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segunda-feira, 29 de julho de 2013

A outra parte de mim (VIII)

  
    Thais e Tatiana estavam boquiabertas; aquele rapaz do sonho, o tal príncipe, era ele ali na frente delas.
  - O que...o que significa isso? - gaguejou Thais, recuando.
    O rapaz bonito desceu um lance de degraus, aproximando-se um pouco mais.
  - Eu sinto muito que tenhamos que nos rever numa situação dessas, depois de tanto tempo.
   As meninas fizeram cara de confusas. O que ele queria dizer com "tanto tempo"? 
   Dentro dos tubos de vidro, as ainda incompletas Sirens se remexiam, de olhos fechados, como se tivessem tendo pesadelos. Os olhos da pequena giravam pelo local; era muita coisa pra uma só mente, ela se sentia totalmente perdida.
   - O que quer dizer com "tanto tempo"? - perguntou a mais velha, arriscando um passo à frente.
   O suposto príncipe franziu a testa e fez cara de desapontado. Soltou um longo suspiro e falou:
   - Ah Garuda... justo você, minha sentinela favorita. Me quebra o coração te ver dessa forma...
   - Vai se foder cara! que historia é essa?
   Ela quis avançar, mas foi segurada por Fred. Protestou e tentou se soltar, mas ele não a deixou.
   - Me solta! a doido? o que ta acontecendo aqui? quem é esse cara e porque ele diz que em conhece?
   Fred não respondeu. Continuou a segura-la por trás, em silencio.
   - Obrigado Krey. - disse ele. - Caminhou até o cientista e sem olha pra ele, disse: - Eu te disse Dr. Barnes, Krey é leal a mim. Era só uma questão de tempo até o garoto digerir a ideia e aceitar seu lugar.
   - Porque ele tá te chamando de Krey?  Fred! fala comigo! o que tá acontecendo?
   Mais uma vez o rapaz bonito suspira tristemente.
   - Eu não aguento isso. Vê-la dessa forma me magoa muito. Depois de todos esses anos, todos esses experimentos... - olhou a sua volta, para as Sirens - recriando esse monte de copias inuteis para finalmente chegar a você... e ainda assim, um fracasso.
  - Eu sinto muito senhor Abssalis. - disse o velho cientista.
  - Não é sua culpa Dr. Barnes. Meu projeto ainda é grande demais para esse mundo e para a atual tecnologia. Mas fico satisfeito em saber que ao menos Krey está comigo mais uma vez, certo Krey?
  Olhou diretamente para Fred.
   - Sim, príncipe Abssalis. Eu estou com o senhor, pela velha glória de Atlantis. Deixe as garotas irem embora. O despertar falhou com elas mas não precisa mata-las. Ainda podemos tentar desperta-las daqui alguns anos.
    - Não Krey. Eu não suporto viver sabendo que meus amigos mais queridos estão vivendo em corpos humanos, apagados da existência. Mate-as Krey, por favor, quanto mais cedo elas morrerem, mais cedo...
     - Não vou mata-las. Chega de mortes, já morreu gente demais. Deixe-as ir.
     Thais estava perplexa; Fred estava conversando com aquele homem, e estava aceitando ser chamado por outro nome. Então ele sabia mesmo o que estava acontecendo, ele sempre soube, aquele tempo todo.
    - Você está desobedecendo uma ordem direta minha Krey?
    - Você ja tem o que queria, não precisa...
    - O QUE EU QUERIA? - grita ele, cortando Fred - O que eu queria era meus amigos comigo mais uma vez! mas só você voltou! Olhe pra essas duas! não são nem a sombra do que costumavam ser! Garuda era leal a mim, você lembra? o que ela tem de parecido com essa menina estranbelhada aí? NADA! Falhei Krey, eu falhei com vocês todos, mais uma vez! Mais uma vez depois de tantos anos!
   O príncipe tomou ar, se recompôs e continuou, mais calmo:
    - Mas está tudo bem. O reconstituidor mental está quase perfeito. Funcionou em você, trouxe você de volta. Wukari já foi morto pelos Frogs, e essas duas também já estariam, se você não estivesse ajudando-as. Estou disposto a perdoar seus erros se as matar agora. Não me force a te matar, velho amigo.
   Fred sentiu Thais amolecendo em seus braços. Iria morrer assim? como se fosse um rato de laboratório que perdeu a utilidade?
    Tatiana continuava quieta, de cabeça baixa.
    - Então vai ter que me matar, meu príncipe. - soltou Thais - Chega de mortes, essas pessoas desse mundo não precisam pagar pelo nosso passado. Acabou! Se não tivesse sido um covarde com deveria ter sido bravo, nada disso teria acontecido. Pode me matar, eu não quero mais servir o covarde sem princípios que você se tornou. 
    Triste, o principe tirou do bolso um tipo de pistola e apontou para ele.
    - Você... como se atreve a me culpar por isso tudo? Atlantis foi destruída. Todos morreram Krey, Todos. Eu consegui preservar as almas de vocês para que um dia pudéssemos ficar juntos mais uma vez... e é assim que me agradece? me chamando de covarde e sem princípios?
    - Olhe a sua volta, Abssalis. Quantas crianças você matou nessa sua brincadeira? Crianças. Pequenas e frágeis crianças. O homem bom e gentil que você era, morreu com nosso mundo. Tudo que sobrou do meu amigo, é uma alma retorcida pelo medo e pela raiva. Meu juramento não foi com tal homem. Não devo por que obedecer.
   - Entendo. Não em deixa outra opção. Adeus Krey.
    Uma bandeja médica voou até o príncipe, arrancando a arma de sua mão. Todos olharam para trás e viram Tatiana, de cabeça erguida, olhando para Abssalis, com firmeza.
   - Tati...? - perguntou Fred.
   - Meu nome é Wendigo... e eu me lembro de tudo.
   Abssalis arregalou os olhos. Então, Wendigo havia despertado no corpo da menina.
   - Tati? - perguntou Thais indo ate ela. - o que você ta falando?
   Tatiana gentilmente a afasta, sem tirar os olhos do príncipe. A voz dela estava firme e forte e seu olhar era igualmente firme.
   - Majestade, eu concordo com Krey - disse a pequena - passou dos limites. As pessoas desse mundo não podem ser massacradas a seu bel prazer só porque tem medo de ficar sozinho.
    - Wendigo! você também está nessa de poupar os humanos? o que há com vocês dois? E quanto à glória de Atlantis?
    - Acabou Atlantis! - gritou ela - Se precisa mesmo continuar com seu massacre à essa raça, pelo menos nos deixe fora disso! Você não sabe o que se passa pelos corações deles, porque você nunca esteve na pele de um! Mas o medo... a dor... tudo neles, é bem real pra nós! Não importa quantas vezes você nos reviva e nem por quantos corpos passaremos, nós não vamos nos unir a você e defender suas ideias doentias.
   - Eu concordo com Wendigo - disse Fred - Se Wukari e Garuda estivessem aqui, pensariam igual. Nós fomos seus guardiões. Amávamos nosso mundo e nosso povo, mas agora acabou. Você mesmo disse, todos morreram. Pare de sujar de sangue o nome de Atlantis. Aceite que acabou. Faço das palavras de Wendigo, as minhas: não importa quantas vezes tente me despertar, eu não vou servi-lo. Pode me matar se quiser.
   Thais estava perdida: agora até Tati estava entendendo tudo, menos ela? ela deveria ser alguém chamada Garuda? e Fred se chama Krey. Tatiana se chama Wendigo?
   - Mas o que que ta acontecendo aqui... alguém me explica, por favor... - chorou ela, mais pra si mesma do que para mais alguém.
    - Não! isso não pode estar acontecendo! eu fiquei séculos nesse mundo, aguentando esse humanos e pra que? pra isso? esse tempo todo, a alma de vocês foi de corpo em corpo, reencarnando, enquanto minha magia sumia! eu tive que esperar esse mundinho evoluir o bastante para poderem recriar algo semelhante à nossa tecnologia, e agora, que o recuperador mental está pronto... vocês se rebelam contra mim!
    Abssalis correu até a pistola caída e a pegou. Apontou-a para Tati e Fred, em desespero. Ele continuava a repetir " não não não!" o tempo todo.
    - Ele ficou louco. - disse Fred. - Fique atenta...digo, atento...
    - Ainda sou eu Fred. Sou Tatiana e Wendigo.
    - É bom não ser mais o único a se lembrar.
    - O que faremos com ele?
   O príncipe apontou a arma para a própria cabeça.
    - Abaixe isso Abssalis. - falou Fred.
   - Eu não tenho mais motivo para viver. Eu fugi e sobrevivi esses anos todos por vocês. Se não querem aproveitar o presente que lhes dou e dispensam minha companhia, então, eu não preciso mais viver. Vou encarar meu destino, com você mesmo disse Krey. Eu só lamento não ter instalado um dispositivo de autodestruição nesse lugar. Seria um ótimo final, como nos filmes, não acham?
   - Abaixe essa arma seu idiota! não vai mudar nada se matando! - gritou Tati.
   - Não vou. Mas não ligo mais.
   Atirou.
   A parede branca atrás dele foi manchada de sangue. O príncipe Abssalis de Atlantis, jazia morto no chão, com a têmpora estourada.
***

   - Difícil acreditar... - disse Thais, ainda em choque. -Então eu fui alguém chamado Garuda, um dos quatro guardiões de um mundo chamado Atlantis que não existe a séculos... e minha forma de águia é na verdade a verdadeira face de Garuda? meu outro eu?
   - Sim - concordou Fred - e por você não se lembrar de quem tinha sido, ele queria te matar, assim sua alma renasceria em outro corpo e ele poderia mais uma vez tentar te despertar com o recuperador mental.
    Estavam num tipo de sala de espera, naquele mesmo andar. Thais estava largada num sofá, ainda em choque, tentando engolir aquilo tudo. o Dr. Barnes estava ali num canto em total silencio. 
    Tatiana, em sua forma de lobo, entra na sala, carregando duas mochilas cheias de coisas. Ela solta as mochilas no chão junto com outras três
     - Acho que eu pai falou a verdade, não tem mais ninguém aqui. Isso é tudo que pude encontrar de útil. - apontou para as 5 mochilas no chão.
     - O que fazemos agora? - perguntou Thais, chorando.
     - O dr. Barnes...  meu pai disse que há um barco nas docas ainda. O ultimo que sobrou desde que todos fugiram. Vamos embora.
     - Pra onde? não temos casa, não temos nada! e porque vamos levar seu pai cientista maluco junto?
     - Precisamos dele para o barco. Escuta, vamos ficar bem. Recolhemos suprimentos e coisas de valor desse lugar. Vamos voltar para a civilização e vamos fazer nossa vida nova, só eu, você e a Tati.
     - Eu e Fred? ou eu e Krey?
     - Nada em mim mudou. Desde que me conhece, sou assim, ainda sou o mesmo de antes. A Tati ainda é a mesma... ou quase.
     - Ainda sou uma menininha chorona de 14 anos... que as vezes vira um lobo cinzento, antigo guardião de Atlantis. Só isso.
       A menina mais velha olhou para todos ali presentes. Só ela ainda não tava aceitando aquilo tudo?
     - E as sirens? o que elas são? e o que vai ser delas?
     - Elas foram uma tentativa de te clonar... tentar recriar Garuda, artificialmente, dentro do corpo de outra pessoa. não aconteceu bem como o esperado, mas Abssalis soube aproveitar o resultado. Meu pai desligou os aparelhos que as mantinha vivas. Elas vão simplesmente dormir e nunca mais acordar.
     Ela se encolheu no sofá, abraçou os joelhos e chorou. Fred a abraçou, tentando acalma-la.
     - Me promete uma coisa? - perguntou ela, depois de chorar um pouco.
     - O que?
     - Que vamos ficar bem.
     - Prometo.

  Naquela mesma tarde, os quatro estavam embarcando para sumir daquela ilha. O sol se punha enquanto a ilha ficava cada vez menor. estavam todos nervosos. conseguiriam se adaptar a viver entre pessoas novamente? só com o tempo saberiam. Thaís estava pensando nisso tudo, observando a maldita ilha sumir no horizonte. Tatiana se aproximou dela.
   - Tá tudo bem?
   - Eu tava pensando... eu esperava algo bem diferente...
   - Do que?
   - De como tudo acabaria. Todos esses dias eu pensava em como seria a verdade... seriamos, robôs? aliens? vitimas de experiências? mutantes? mas não. Nós somos reencarnações de guardiões antigos.
   - Eu também pensava nessas coisas, mas... a mente de Wendigo despertou na minha, e quando eu e ele viramos um só, tudo ficou claro. Não fique chateada por não se lembrar. Eu preferia não lembrar dos nossos amigos morrendo e nosso mundo sendo destruído.
   - Obrigada...

    O destino não era certo para aqueles três jovens. Pra onde quer que vão, levaram consigo, memorias de dor, terror e sofrimento. Suas vidas eram um mistério, mas seja o que for, eles estão certo que vão superar, pois já viveram coisa muito pior. 
   Tati olha pela ultima vez para a ilha. Será que seus pais ainda pensam nela? qual seria a reação delas ao voltar a vê-la? seria sensato tentar voltar pra eles ou seria melhor simplesmente fazer como disse Fred; seguir em frente criar uma vida nova. Seja como for, Wendigo estará com ela, e não há nada mais para temer.


FIM.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A outra parte de mim (VII)


  Dormir do lado de fora não era fácil. Barulho estranhos, insetos, pedras... Não que ela tivesse muito luxo em sua antiga cela... Os restos da fogueira ardiam em brasa ao seu lado, usando um tronco como travesseiro, ela esticou o corpo no chão e o deixou relaxar. Olhou para o céu; estava limpo e cheio de estrelas. Em algum lugar, seus pais também olhavam as mesmas estrelas. Será que ainda pensavam nela?
    Já tinha mais de dois anos desde o incidente na escola. Lembra-se melhor agora que conseguiu controlar melhor a besta em si. Dois anos é tempo demais; cresceu muito desde aqueles dias, não só na altura; sentia-se toda crescida. Sentiu raiva.
    Por dois anos, esses caras, sejam lá o que são eles, a sequestraram e a fizeram coisas horrendas com ela... mas, e se ela sempre tivera sido um monstro? e se o motivo de estar nesse pedaço de terra esquecida fosse exatamente ser um monstro? Caiu no sono, imaginando os horrores que veria no dia seguinte.
    
    Viu uma cidade. Era linda, quase toda feita de prata, com cachoeiras cristalinas por toda parte. As pessoas vestiam roupas de varias cores e pareciam felizes. Um casal de jovens caminhava por entre um jardim cheio de rosas vermelhas, ambos eram muito bonitos e pareciam apaixonados. Quando estavam prestes a se beijarem, um clarão os cegou, seguido de uma explosão. As rosas, o jardim e todos ali presentes ardiam e queimavam. A moça gritava conforme seu rosto derretia como geleia. olhou para as próprias mãos e viu sua carne escorrer por seus ossos.
     " O príncipe! protejam o príncipe!"

   Acordou num pulo. Estava no refugiu improvisado entre as pedras. Fred estava a alguns metros dela, em sua forme de tigre. Em suas patas alguns peixes.
   Esfregou os olhos, tentando esconder o susto, mas ele era mais esperto que isso.
  - Sonhos ruins? - perguntou com sua voz grave de tigre.
  - Não sei... meio estranho... uma cidade...
  - Toda prateada com cachoeiras, jardins e um casal bonito? - completou ele, sem deixar ela falar. - Eu sei.
  - Como assim? você... 
  - A Thaís também. Íamos te falar, mas preferimos deixar você conhecer sozinha. Agora com você, somos três que tem o mesmo sonho, isso deve significar algo.
   Largou os peixes em cima de uma pedra e sentou-se no chão. Converteu-se para a forma humana, sob os olhares da pequena.
  - O que é aquela explosão e quem é o príncipe?
  - Sei tanto quanto você. Olhe, vamos esperar a Thais voltar dai comemos e vamos perguntar pessoalmente, o que acha?
   Concordou em silencio. Alguns minutos depois, o peixe no fogo começou a cheirar bem, o que fez o estomago dela roncar.
   - Transforme-se. - pediu Fred, do nada.
   - Que!?
   - Transforme-se! agora, sem estimulo algum, por si só. Sem raiva ou angustia. Traga o lobo por sua vontade.
   - Eu não consigo, já tentei!
   - Tente de novo. dessa vez, não pense em nada a não ser no que há dentro de você, no seu outro eu. O que está ai não é um monstro. É você e pode ser controlado. Feche os olhos e consente-se.
    Contrariada, ela obedeceu. Fechou os olhos e tentou pensar apenas no que sentia quando era o lobo. A força, a agilidade, as garras, a liberdade que aquilo tudo lhe fazia sentir. Quando era o lobo, ela sentia como se nada pudesse impedi-la.
     Imersa na própria mente como num transe, permaneceu sentada de pernas cruzadas, tentando se entender melhor. Viu-se numa clareira no meio de uma mata vasta. Ao longe, um lobo uivava para a linda lua que brilhava no céu. Aproximou-se do lobo e os dois trocaram olhares. Olhou intensamente nos olhos da besta. Era grande, linda e poderosa. Num instante seguinte, a besta não estava mais diante de si. Fora substituída por uma garota magrela, feiosinha e de cabelo embaraçado. Viu-se então, no corpo do lobo, olhando para si mesma, em forma humana.
    Voltou a si.
    Por impulso, levou a mão ao cabelo e o sentiu embaraçado e sujo, ele estava horrível mesmo.
    Thais ja estava ali, ela e Fred estavam comendo. Ambos olharam pra ela.
   - Tá tudo bem? - perguntou Thais.
   - Sim. - disse ela, levantando-se e catando um peixe, estava faminta.
   - Consegue se transformar? - perguntou o rapaz.
   - Consigo. - respondeu com a boca cheia de peixe. - Confiem em mim.
   - É o que temos pra hoje. - disse ele  um tom de desdém.

    Depois que comeram, apagaram o fogo e se reuniram para uma ultima conversa antes da investida.
    - Vamos em forma humana até a única entrada que conhecemos, de lá, viramos bicho e forçamos a entrada. Vamos matar  que nos jogarem, um por um, até que os responsáveis mostrem a cara e comecem a se explicar! - disse Fred.
  - É uma merda de plano mas é o que vai ser, não vou viver fugindo pra sempre! - completou Thais.
    Correram mata a dentro.
    O sangue pulsava forte em suas veias, não tinha ideia do que iria acontecer nas próximas horas. Muito provavelmente estaria morta, mas não sentia um pingo de medo; dadas as recentes circunstâncias, morrer não parecia ser uma má ideia.
    Ao chegarem, uma brisa trouxe um cheiro pútrido terrível, que quase a fez vomitar; a entrada do laboratório ainda estava coberta de cadáveres e tripas. Guardas e crianças mortas. Fred da um soco numa árvore com raiva.
  - Elas morreram porque eu as libertei. os guardas atiraram nelas sem nem pensar, e os poucos que consegui salvar, morreram para os frogs!
   - Mas eu ainda to viva - respondeu Tati. Ela também era parte do grupo de fugitivos.
   - Desculpe eu... só... queria ter feito mais.
   - Você fez o que pôde. Agora vamos terminar isso logo - disse Thais - não tão achando isso muito abandonado?
    Tudo era silencio. nenhuma alma viva. O trio saiu do mato e adentrou os portões abertos.
   - Será que matamos o ultimo lote?
   - Mais provável que estejam nos esperando.
   A porta de metal por onde tivera saído ainda estava do mesmo jeito que ela deixou ontem. Ninguém MESMO andou por ali desde então.
   - Isso ta muito estranho, to com um pressentimento ruim. - disse Thais.
   - E se for uma armadilha? - perguntou a pequena.
   - Então, nós caímos nela.
   Mal terminou a frase e já meteu o pé na porta, escancarando-a.
   À frente, o corredor de cadáveres de cientistas e guardas. Fred alegou ser o autor daquela chacina.
    O térreo era onde ficavam as celas, todas estavam abertas. As que não estavam vazias, habitavam pessoas mortas por marcas de bala. Era um ambiente de morte horrível, o clima do lugar era muito pesado e caia sobre o trio de forma poderosa, lentamente drenando a moral deles.
   - Vamos logo para o andar dos experimentos! onde me fizeram as cicatrizes! tenho certeza que lá nós vamos encontrar algumas respostas.
    Quando chegaram à porta do elevador, uma voz pode ser ouvida por todo o lugar.
    - Esperávamos vocês, preciosos intrusos. Por favor, venham nos visitar no segundo andar, o laboratório de genética 1. Bem vindo ao lar Freddy.
    As duas o olharam, esperando uma resposta.
     - Você não entenderiam!
     - Eu sabia que você tava escondendo alguma coisa! - gritou Thais. - como quer que confiemos em você?
     - Não é o que pensam! Aquele era meu pai, o principal motivo de eu querer acabar com tudo isso!
     -  Seu... seu pai!? - Thais parecia confusa e irritada.
    - Ele é o cientista chefe, e não o responsável, tá? olha não temos tempo pra isso, vamos logo e tudo vai se encaixar nos eixos.
    - Vai é? como posso confiar em você agora?
    - Porque eu te amo, sua imbecil! - gritou.
    Silencio.
    Tati estava muito desconfortável no meio deles. Thais olhava Fred incrédula, e ele, bufava nervoso.
    - Por isso... eu não vou deixar ninguém te machucar.
    Em silencio, os três entram no elevador. A própria Thais aperta o botão do segundo andar.
    O clima do elevador estava estranho.
    Quando a porta abre, eles se veem em uma sala com várias maquinas estranhas. Por todo canto, tubos de vidro com pessoas dentro. Os tres sairam do elevador, horrorizados, eram crianças eram...
    - Sirens! - chorou Tatiana.
    Eram meninas, cobertas de cortes pelo corpo todo. As costas, farrapos que um dia vão ser asas. Era  como se estivessem em úteros artificiais, nascendo aos poucos.
    Aquela sala era familiar para Thais. Foi dalí que ela fugira. A maldita sala onde a fizeram aqueles cortes. A imagem das Sirens gemendo e se contorcendo ao redor deles, eram repulsiva, nem repararam no velho senhor de Jaleco branco logo à frente dele.
    - Sejam bem vindos. Olá Freddy.
    O sangue de Thais ferveu no mesmo instante. Ela correu e agarrou o velho pelo colarinho.
   - O QUE FEZ COMIGO? O QUE FEZ COMIGO?
    Ela o sacudia com raiva, mas o senhor não dizia nada.
    - Solta ele Thais!
    Fred tentava acalma-la, mas nao dava muito resultado.
    - EU VOU TE MATAR SE NÃO ABRIR A BOCA!
    Então, uma porta abriu ao fundo da sala.
    Uma presença congelante, fez com que todos parassem de falar, até mesmo a irritada Thais.
    Ele era jovem, estava vestido elegantemente. Seu cabelos eram longos e castanhos. Seus olhos pareciam diamantes e seus sorriso era confiante e calmo.
     Thais soltou o velho em suas mãos e todos olharam boquiabertos para o jovem de beleza ímpar.
     - Sejam bem vindos - disse ele, com uma voz macia. - Meus amigos. estou feliz em finalmente tê-los aqui.
     Aquele rosto... nenhum deles tinham qualquer duvida...
     - O príncipe...- sussurrou Tatiana.

CONTINUA
    

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Homem dos Sonhos (IV) - O Gato Preto


Capítulos anteriores:

Parte 1/Parte 2/Parte 3



Os raios de sol entraram pela janela através da cortina desbotada e acariciaram o rosto da menina adormecida em sua cama, fazendo-a abrir os olhos, mesmo contra a sua vontade. Olhou ao seu redor e sentiu uma mistura de estranheza e familiaridade. Reconhecia a outra cama no quarto, toda arrumada com o lençol esticado, mas não havia nada de estranho nisso. Viu as fotos de animais na parede acima desta outra cama, e também não havia nada de estranho nisso. Observou os poucos brinquedos distribuídos ao longo do quarto, alguns largados de um lado e outros organizados em um canto, facilmente indicando qual era de quem. Isso também não era estranho.
O estranho era justamente o fato de nada disso ser estranho de qualquer forma. Era sua familiaridade e normalidade que tornava cada uma dessas coisas  tão estranhas.
Ela levantou e aos tropeços se dirigiu para a porta, arrastando um bicho de pelúcia marrom com orelhas grandes demais para ser um urso e nariz pequeno demais para ser um cachorro.
Quando abriu a porta foi assaltada pelo cheiro delicioso de bolo de fubá que vinha de algum lugar dentro da casa. Guiada por seu nariz, a menina caminhou através de um corredor do qual não se lembrava, mas ao mesmo tempo lhe era conhecido. Ficou muito chateada ao notar que o chão estava molhado encharcando suas meias de bichinhos.
No meio do corredor havia uma porta, que estava entreaberta. Era daquela porta de onde vinha a água que se espalhava pelo chão. Ficou curiosa para saber o que havia ali dentro, mas ao mesmo tempo sentiu medo. Como se alguma coisa pudesse pular de lá em cima dela a qualquer momento.
Um miado grave chamou a sua atenção em direção ao final do corredor e viu um grande gato preto sentado olhando sério para ela. Ele miou de novo, como se desse uma bronca, e a mandasse se apressar.
Sentiu novamente o cheiro de bolo que a atraíra e decidiu seguir na direção do felino deixando de lado a porta do banheiro onde um cadáver repousava.
Ao final do corredor, chegou a uma cozinha, onde viu sua irmã mais velha arrumando a toalha de mesa para o café da manhã, como ela fazia todos os dias quando eram crianças. Só que aquela não era a casa onde cresceram, e nem eram mais crianças. Estavam na cozinha do apartamento de sua irmã, uma veterinária formada que pouco exercera a profissão dos seus sonhos, devido a implicância do marido. Marido este que a trocou por outra mulher depois de sete anos de muitas barras encaradas juntos.
Mas Leila não parecia nem um pouco com uma mulher recém-abandonada pelo marido. Ao contrário, estava alegre e jovial como a muito sua irmã não via.
Enquanto arrumavam a mesa, conversaram amenidades e riram. Contando histórias da infância, compartilhando segredos da adolescência. Uma conversa leve e descontraída. O tipo de conversa que as envolvidas nunca se lembrariam direito das palavras ditas, mas cuja memória sempre traria um sorriso ao rosto.
Sentaram à mesa e beberam o café. O gato preto subiu na mesa e Leila o acariciou, e mesmo ao ronronar de prazer por aquele toque, ele olhou para Aline com olhos semicerrados, como se a julgasse. Ela voltou a olhar para a irmã e houve um momento de silêncio entre elas.
- Você morreu, mana. - Aline falou de forma direta. Não havia medo ou tristeza em sua voz.
A resposta de Leila foi apenas um sorriso e um aceno de cabeça.
- Eu mesma peguei o seu corpo naquele banheiro ali atrás. - ela continuou.
Leila tocou a mão da irmã caçula com a sua.
- Eu sei, querida.
- Eu me atrasei. Se eu tivesse chegado mais cedo...
- Não teria mudado nada.
Aline apertou a mão da irmã.
- Isso tudo é um sonho, não é? Nada disso é real.
- Sim, isso é um sonho. Mas nem por isso é menos real. - Leila respondeu.
- Você está muito bem para uma morta. - Aline disse sorrindo.
As duas deram uma gargalhada.
- Tem seu lado bom. Não há mais expectativas, ansiedades, medos, tudo aquilo que causava rugas. Eu não recomendo para ninguém, mas tem suas vantagens.
Estava feliz por ver a irmã assim, tão leve e tranquila. Sentira falta de seu bom humor. Leila tirou o bolo do forno e serviu um pedaço para cada uma.
- Dê uma mordida e me diga o que acha.
Aline mordeu um pedaço e o sabor se espalhou pela sua boca.
- Nossa! Está igualzinho ao que a mamãe fazia.
- Pois é! Eu precisei morrer pra finalmente acertar o ponto desse bolo.
- Você já esteve com a mamãe?
- Ainda não. Mas daqui eu vou para onde ela está. Pelo menos é o que me disseram. - E olhou para o gato deitado na mesa que levantou a cabeça como se falassem com ele. - Eu estou quebrando algumas regras para estar aqui contigo. Já imaginou? Logo eu, a irmã certinha quebrando regras.
Aline riu. Das duas, ela era a que mais se metia em confusões, mas chamar Leila de certinha não era algo exatamente verdadeiro. Quantas vezes não acobertara a irmã, confirmando que haviam ido dormir na casa de uma amiga enquanto ela dava uma escapadela com algum namorado quando eram mais jovens.
Mas antes que pudesse lembrar desses causos, Leila continuou séria:
- Mas eu precisava te ver mais uma vez e te avisar, mana.
- Avisar?
- Ele vai vir atrás de você! O homem que me atacou. Ele estava atacando vítimas de forma aleatória até agora, mas me reconheceu e agora vai vir atrás de você.
- De mim? Por quê?
- Porque você o impediu anos atrás, ele nunca esqueceu disso, mesmo que eu e você tenhamos esquecido.
Aline estava confusa. Do que a irmã estava falando?
- Mas, quem é ele?
- Eu não sei o nome dele, mas...
Neste momento o gato preto miou alto e Aline não conseguiu mais ouvir o que a irmã falava, como se a voz dela fosse ficando cada vez mais distante. Via os lábios se moverem, mas não havia som. Sentiu como se caísse, mas ao invés de ir para baixo, despencava para trás, para longe da irmã, da mesa de café, através do corredor...
Piscou algumas vezes ao despertar e viu diante de si dois olhos amarelos brilhantes sobre ela. A visão deu-lhe um susto a ponto de dar um pulo para trás e cair da cama onde estava. Soltou uma exclamação de dor e percebeu que a fonte do seu infortúnio era apenas um gato preto que a observava balançando o rabo calmamente.
- Gato filho da puta! - bradou atirando um travesseiro no animal que escapou com um salto ligeiro, com um segundo salto estava fora da cama e com um terceiro deixava o quarto.

* * *
Mancando e xingando ela entrou na cozinha onde André já preparara o café. Imaginou que o cheiro tinha inspirado o sonho do qual despertara.
- Bom dia, amor. - disse com um beijo, quando ele entregou a xícara com o líquido desejado.
- Bom dia, querida. O que foi esse barulho agora a pouco?
Aline provou o café e o gosto não a agradou. Não que estivesse ruim, ao contrário, estava exatamente como gostava. Só que o café de Leila era bem mais forte e encorpado.
- Foi o Tom que me acordou com um susto. Mal abri os olhos e dei de cara com esse bicho olhando pra minha cara.
- Mamãe, o nome dele não é Tom, é Siiitomas. - interrompeu Cristina sentada a mesa já com a cara toda suja de migalhas de pão e manteiga. Como ela conseguia se sujar tanto e tão rápido era um enigma para seus pais.
- Quem te disse isso, querida?
- Ele mesmo, ué!. - respondeu dando de ombros como se dissesse algo óbvio.
O animal miou parado ao lado de um pratinho no chão.
- Ele deve estar com fome. - Aline comentou sentando devagar ao lado da filha.
- Deve estar, ele não comeu nada do que eu deixei pra ele ontem.
- Vai ver ele não gosta dessa ração.
- Mas é a mesma que sua irmã dava. Vai ver ele também está sofrendo com... - e olhou de soslaio para a menina.
Ainda não haviam conversado com Cristina a respeito da morte da tia, e pra falar a verdade nem sabiam por onde começar. Por hora só disseram a ela que Leila teve de viajar as pressas e pediu que eles cuidassem do gato.
- Que nada, André. Gato é um bicho muito independente, não liga pra ninguém além dele mesmo.
- Pode ser. Qualquer coisa eu levo ele no veterinário mais tarde, você viu que ele está com um baita corte na lateral?
E André se levantou para pegar o gato, o qual saiu em disparada assim que ele chegou muito perto.
- Que bicho arisco.
- Minhas costas que o digam. Acho que vou ter de tomar um remédio antes de sair.
- Mamãe, você tá dodói? Quer um beijinho pra sarar?
- Coisa fofa da mamãe. Eu quero beijinho sim, e um abraço bem gostoso também.
E agarrou a menina enchendo-a de beijos.
- Agora eu quero a senhora se arrumando rapidinho para irmos para a escola. - disse soltando-a.
E Cristina partiu em disparada para seu quarto.
- Tive um sonho tão esquisito essa noite. - Aline falou para o marido depois da pequena já ter saído.
- Pensei que você não lembrasse dos seus sonhos.
- Pra você ver como foi esquisito. No sonho eu encontrei com a Leila, e ela tentava me avisar alguma coisa, mas eu não entendi muito bem.
- Deve ser coisa da sua cabeça, com tudo o que aconteceu... - André disse acariciando o ombro dela.
Aline entrelaçou seus dedos nos dele, trazendo a mão para seus lábios e deu um leve beijo, como agradecendo pelo apoio e carinho. Os olhos deles se cruzaram e ela sentiu lágrimas querendo brotar.
- Mais tarde, no enterro, eu te conto melhor. Agora deixa eu ver a nossa menina antes que ela invente de ir de fada sininho ou branca de neve para a escola. - disse se afastando.

* * *

Poucas coisas irritavam mais Aline do que chegar atrasada. Sua mãe dizia, quando ela era criança, que até para nascer ela teve pressa, nascendo de oito meses no meio da festa de aniversário de sua avó. No dia de seu casamento ficara agoniada rodando de carro, sem muita paciência para esperar o momento de sua grande entrada.
A única outra coisa que a irritava mais do que chegar atrasada era ficar parada no trânsito. E quando essas duas coisas se combinavam ela ficava pegando fogo de raiva.
Quando chegou ao cemitério para o enterro da irmã ela poderia ser confundida com o Monte Vesúvio em erupção. Não que ela estivesse realmente atrasada. O caixão só seria fechado dali a mais algumas horas, mas imaginava que as pessoas já estariam chegando e esperavam que ela estivesse lá para recepcioná-los. Afinal era sua única irmã, diriam com certeza.
Além do trânsito cada vez mais caótico na cidade e a dificuldade para estacionar que ela encontrou ao chegar no cemitério onde Leila seria enterrada, outro motivo para o atraso de Aline foi uma discussão com Cristina na porta da escola. A menina esquecera o seu inseparável Sr. Urso ao sair de casa e chorava aos berros por ele. Não havia como voltar em casa e pegar o animal de pelúcia sem se atrasar ainda mais para o velório.
Ela brigara com a filha, com um tom mais ríspido do que desejava. Certamente por causa de todo o nervosismo dos últimos acontecimentos, não que a menina tivesse qualquer culpa.
Ao chegar na sala onde o corpo de Leila era velado, André veio até ela ainda na porta, encontrando-a ofegante da corrida que dera para chegar ali.
- O que houve? Estava ficando preocupado. - sussurrou ele.
- Cristina deu um show para entrar na escola por causa de um brinquedo idiota. - ela disse, suspirando. - E ainda esqueci meu celular em casa. Não sei onde ando com a cabeça.
Na verdade, sabia. Ambos sabiam. E foi por isso que André a abraçou de forma acolhedora.
- Está tudo bem. - ele disse beijando-lhe a testa. - Agora respire fundo e fique calma, ok?
- Por quê? Alguma coisa errada?
Olhou ao redor e viu poucas pessoas distribuídas pela pequena sala de velório. Alguns amigos de Leila dos tempos de faculdade, junto com alguns amigos da delegacia de Aline que foram até lá dar-lhe seus sentimentos. Sua irmã sempre fora amável, mas tímida, e por isso conquistou poucos amigos. Para piorar, a possessividade de seu ex-marido fez com que se tornasse ainda mais reclusa.
O mesmo ex-marido que naquele momento estava de pé ao lado do caixão acariciando os cabelos da falecida.
Vê-lo inclinado sobre ela, como se ele fosse o pobre viúvo sofredor fez Aline sentir uma queimação em seu estômago e contrair os músculos. André até tentou segurar a esposa, mas ela se desvencilhou de seus braços com uma força que mesmo o professor de educação física não era páreo.
- Tire suas mãos dela. - ela falou baixo, mastigando cada palavra.
- Aline! Quanto tempo não nos vemos. Muito triste que seja nessas condições. - Márcio disse se aproximando dela com os braços abertos.
Quando ele chegou perto ela levantou o braço colocando a mão espalmada no meio do peito dele.
- Por mim, esse tempo poderia ser eterno. O que está fazendo aqui, Márcio?
Ele mantinha um leve sorriso no rosto, como quem sabe de algum segredo ou fala com uma criança.
- Ora, minha esposa morreu e...
- Ex-esposa! Você deixou isso bem claro quando a abandonou por uma vagabunda qualquer.
Ele estreitou os olhos na direção dela por apenas um instante olhando para ela, mas manteve o sorriso debochado.
- Nós ainda não havíamos nos divorciado, então perante a lei ainda éramos casados. Você, de todas as pessoas deveria saber disso. - e deu uma risada forçada.
Aline cerrou os punhos e sentiu a presença de André as suas costas, tentando acalmá-la.
- Diga logo o que você quer e volte para o buraco de onde você não deveria ter saído, Márcio! - ela disse entre dentes.
- Como eu dizia, minha esposa morreu. - respondeu enfatizando a palavra “esposa” olhando-a nos olhos. - E eu vim lhe prestar as últimas homenagens.
- A melhor forma de homenageá-la seria dar um tiro na própria cabeça.
Márcio deu uma nova risada, tão falsa quanto a primeira e colocou mão no ombro dela.
- Que isso, cunhadinha. Vamos deixar...
Não conseguiu terminar a frase, pois Aline já havia agarrado sua mão e torceu-a junto com o braço fazendo-o se curvar. A única resposta dele foram gemidos de dor e xingamentos enquanto ela o conduzia para fora do velório. Lá ela o soltou, mas de uma forma a fazê-lo cair de cara no chão.
- Isso é agressão! Eu vou te processar, sua vaca!
- Eu tenho várias testemunhas lá dentro, dentre elas três policiais, que vão atestar que eu estava apenas me defendendo de um contato indesejado. Além do que, este é um momento apenas para amigos e familiares, e você não é nenhum dos dois.
- Você não pode fazer isso. Eu tenho meus direitos!
- Então entre na justiça por eles. Até lá minha irmã estará finalmente longe do seu alcance para sempre.
- Isso não vai ficar assim. Você vai me pagar, sua vagabunda!
- Ameaçar uma policial? Sabia que eu posso te prender por isso, não é?
Ele abriu a boca, mas apenas bufou enquanto ajeitava os cabelos que ficaram desgrenhados na queda.
- Mas em respeito a minha irmã, vou deixar você ir embora. Considere isso como a última coisa que você vai sugar dela, seu verme.
E dizendo isso deu as costas para o “cunhado” e voltou a sala do velório onde a maioria a olhava de boca aberta, e alguns lhe direcionavam sorrisos e olhares de aprovação.
Ela se aproximou do caixão pensando “agora você pode partir em paz, mana.” Ficou impressionada com o semblante calmo da irmã, uma paz que há muito não vira naquele rosto em vida parecia ter se instalado na morte. Podia perceber até um leve sorriso em seus lábios, como se aprovasse a sua última atitude ao despachar aquele traste.
E ao olhar para os lábios da falecida, Aline teve a impressão por um instante de vê-los se mover, mas percebeu que era apenas a lembrança do final do sonho que tivera. Sentia que a irmã queria lhe dizer algo importante, mas ela não conseguia distinguir as palavras.
As pessoas se aproximaram e apresentaram seus sentimentos a retirando de seus devaneios. Uma professora de Leila, dos tempos de faculdade comentou, com a voz embargada, o quanto sua irmã teria sido uma excelente veterinária, e que ela mesma a havia indicado para trabalhar em um haras em uma cidade próxima, mas que ela decidira não aceitar porque o marido preferia ficar na capital.
O chefe de Aline disse que ela poderia tirar uma despensa se precisasse de tempo para organizar sua vida. Ele sabia como a irmã era importante para ela e deu-lhe um abraço de apoio.
Alguns tios com quem ela não tinha contato em anos perguntaram sobre sua vida, sobre sua filha, comentando que algumas vezes as tragédias podem servir para reaproximar a família.
Quando finalmente chegou o momento de fechar o caixão, Aline pediu para aguardarem um momento para uma última despedida. Ela ajeitou uma mecha do cabelo e olhou bem o rosto pálido com lágrimas nos olhos. Por um instante pareceu ouvir sua voz e, enquanto a tampa descia, a imagem dela no sonho voltou a sua mente. Tentava lembrar do que ela dissera, sem conseguir.
Durante a descida do caixão para seu descanso final, ela fechou os olhos e a imagem da irmã na cozinha de seu apartamento apareceu nítida e clara, mesmo que ela não escutasse as palavras, podia ver seus lábios se movendo e conseguiu compreender uma única palavra, um nome.
Aline abriu os olhos de repente e pediu licença ao marido se afastando do local do enterro. Ouviu alguém perguntar se estava tudo bem, mas nem prestou atenção na resposta de André. Já estava com o celular no ouvido esperando que os toques de chamada se transformassem na voz de alguém que diria que estava imaginando coisas, que seu pressentimento era bobo e tudo não passou de um sonho motivado pela dor da perda da irmã.
Mas a resposta que recebeu não poderia ser mais contrária a desejada.

* * *
“Nós já íamos ligar para a senhora.”
Foi o que a atendente disse ao telefone.
Mentira!
“É que houve um probleminha.”
Ela continuou.
Outra mentira. Aquele problema não tinha nada de “inha”.
“Nós não sabemos onde ela está.”
A única verdade dita naquela conversa de telefone em que apenas a atendente falava sem parar, dando explicações e justificativas que de nada adiatavam.
Aline queria gritar, esbravejar, e descrever, com detalhes, aonde a atendente devia enfiar o seu “sinto muito”.
Mas ela não fez nada disso.
Não fez nada.
Ficou completamente anestesiada diante da dor de saber que sua filha desaparecera.
A partir daí, os acontecimentos passaram de forma rápida e enevoada ao seu redor. Alguém (André? Daniel? Seu chefe?) veio até ela no cemitério para ver se estava tudo bem. Ela deve ter dito alguma coisa, pois depois foram até a escola de Cristina. Após muitas lamúrias e gritos, alguns da própria Aline, que mesmo em seu estado teve alguns rompantes, alguém da delegacia disse que a encontrariam e que ela devia ir para casa.
Era melhor mesmo sair dali, antes que fizesse algo que pudesse se arrepender.
Entrou em casa com André ao seu lado. Ele disse para ela descansar, que iria preparar um chá para eles. Ela concordou, mas em vez de entrar no próprio quarto ela foi até o da filha, arrastando os pés como um zumbi.
Ainda tinha alguma mínima esperança de que ao abrir a porta veria a menina ali com seu sorriso banguela e que ela viria correndo para o seu abraço. Coisas tão simples, e de que sentia tanta falta naquele momento.
Tudo que encontrou foi a cama desarrumada, brinquedos espalhados e o Sr. Urso em cima da cama. O mesmo bicho de pelúcia que fora motivo da discussão mais cedo. Aline o levantou e um pensamento macabro atravessou sua mente.
“E se esta briga fosse a última vez que falaria com a filha?”
Ela limpou os olhos respirando fundo.
“Não podia pensar assim. Tinha de ser forte. Iria encontrá-la.”
Mas as lágrimas teimavam em rolar e ela, quase sem perceber, abraçou o urso sentando-se na cama. E chorou como a muito não chorava. A dor e a tristeza brotando de seu peito com a força de um rio.
Pouco depois, um barulho chamou a sua atenção e viu o gato preto sentado sobre as patas traseiras no chão próximo a ela balançando a cauda de um lado para o outro lentamente.
- Vem cá, Tom. Nesse momento até a sua companhia é boa. - e esticou a mão na direção dele.
O animal respondeu com um arranhão na mão oferecida e depois disparou para debaixo da cama.
- Filho da...
Foi a gota que faltava! Depois de enterrar a irmã, ter de aguentar o ex-cunhado e o sumiço da filha, esse gato desgraçado ainda a arranhava no momento em que ela lhe estendia uma trégua?
Aline se abaixou do lado da cama, vendo apenas os olhos amarelos brilhantes.
- Eu vou te pegar, seu desgraçado. - disse com raiva.
O gato apenas miou de seu esconderijo, o que Aline entendeu como algum tipo de desafio e mergulhou embaixo da cama atrás dele na escuridão.
E continuou caindo...