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quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Homem dos Sonhos (III) - Lágrimas


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Parte 1/Parte 2


  Aline abriu os olhos sem a menor vontade de voltar a dormir, apesar de ainda se sentir sonolenta. Olhou para o relógio no móvel ao lado da cama e viu que acordara pouco antes dele tocar. Muito pouco tempo para tentar voltar a dormir, decidiu. Alcançou o relógio e desligou o despertador.
Espreguiçou-se na cama e viu que seu marido ainda dormia a sono solto. Decidiu deixar o alarme acordá-lo e sentou-se e ficou por alguns minutos parada, sentindo um gosto ruim, amargo, em sua boca.
Enfim se levantou, esticando o corpo todo, tentando dissipar a preguiça entranhada em seus músculos e foi ao banheiro. Olhou-se no espelho e não gostou muito do que viu. Estava com uma cara amassada e cheia de olheiras.
- Quem consegue estar linda e maravilhosa antes das cinco da manhã? - perguntou ao seu reflexo, e não obtendo resposta completou. - Talvez a Gisele Bündchen.
Sua figura no espelho lhe deu um pequeno sorriso, como que para não deixar a piada passar sem graça.
Começou a escovar os dentes, para se livrar daquele gosto horrível da boca. Afinal, de onde vinha aquele gosto? Só tomara duas cervejas na noite anterior, não podia estar de ressaca por tão pouco, não é?
Aline jogou uma água no rosto, tentando melhorar o aspecto da cara no espelho e não viu muita mudança, pelo menos além do fato de agora estar amassada, com olheiras, e molhada. Foi nesse momento que viu, pelo canto do olho, no reflexo do espelho algo se movendo. Por um instante achou ser apenas a sua imaginação, tentando ignorar, mas logo em seguida percebeu outro movimento no mesmo ponto do banheiro, atraindo a sua atenção. Quando fixou o olhar, um arrepio subiu por sua espinha, suas mãos fecharam em garras na pia, o corpo todo se tencionou até explodir em um grito.
Um instante depois André entrava aos tropeços no banheiro da suíte, encontrando sua esposa em cima da privada aos berros apontando para um ponto do chão próximo do box. Quando seu cérebro ainda sonolento conseguiu se dar conta do tipo de emergência em que se encontrava voltou ao quarto retornando devidamente armado para enfrentar a criatura que morreu esmagada após uma feroz batalha sob seu chinelo.
Quando a adrenalina baixou, André explodiu em uma gargalhada. Aline deu dois tapas em seu marido, enfezada.
- Não tem graça!
- Claro que tem. - ele respondeu entre explosões de riso. - Você já invadiu favela, já peitou traficante, participou de negociação de refém e se apavora diante de uma simples barata?
E voltou a rir.
Aline sentia a face arder e abriu a boca, mas sua fala foi interrompida pelo ranger da porta do quarto se abrindo, o que capturou a atenção do casal que ficou em silêncio, dirigindo suas atenções para fora do banheiro da suíte em direção a origem do som. Uma pequena criatura vinha cambaleando em sua direção.
- Mamãe, você me acordou! - resmungou Cristina esfregando os olhos abraçada ao seu ursinho.
Aline se aproximou da filha emburrada, agachando-se a sua frente, passou a mão pelos cabelos desgrenhados.
- Ô minha dorminhoca, é que a mamãe viu uma barata desse tamanho. - disse abrindo os braços.
- Verdade? - a criança arregalou os olhos, apertando mais o bicho de pelúcia nos braços.
- Verdade! Mas pode deixar que o papai já matou aquele bicho feio e nojento.
A menina olhou para o pai atrás de Aline, que mostrava com os dedos o real tamanho da ameaça matutina. Pai e filha trocaram um sorriso enquanto Aline a pegava no colo para irem tomar o café da manhã.
* * *
- Você estava agitada esta noite. - André perguntou enquanto ligava a cafeteria. - Sonhou alguma coisa?
Aline ficou pensativa por alguns instantes, antes de responder.
- Não sei. Na verdade, nunca lembro dos meus sonhos. Só sei que acordei pensando na minha irmã.
- Também, com tudo que está acontecendo na vida dela.
- É. Mas ainda não acredito que aquele canalha a largou assim.
Cristina, sentada ao lado da mãe na mesa da cozinha, tentou falar alguma coisa, mas apenas fez sons indistintos.
- Ô meu amor. Mamãe já não disse que é feio falar de boca cheia?
A menina bebeu uma golada de leite, e depois de engolir, soltou um suspiro sonoro antes de perguntar:
- Mamãe, o que é um canalha?
Aline e André se entreolharam por um instante, buscando ajuda um no outro. Por fim foi Aline quem respondeu a filha.
- Canalha é uma pessoa muito feia que parece legal mas faz os outros chorarem.
- Então um canalha é uma pessoa má?
- É. Pode-se dizer que sim.
- Então eu espero nunca encontrar com um.
- Eu tbm espero, querida. - disse acariciando os cabelos da filha. - Mas agora a senhorita precisa se arrumar senão vamos chegar atrasadas na escola.
E a menina saiu correndo para o quarto com o urso a tiracolo.
- Acho que você devia ligar pra ela. - disse André enquanto tiravam a mesa.
- Eu estava pensando em passar lá depois do trabalho, mas vou ligar antes, é claro.
- Se quiser, pode deixar que eu pego a Cristina quando sair da escola hoje.
- Obrigado, querido. - ela disse, envolvendo seus braços nas costas largas dele. - Sabia que você é o melhor marido do mundo?
- Sabia!
- Convencido. - disse soltando-o.
Em um movimento inesperado ele girou o corpo, agarrando-a e tascando-lhe um beijo.
- Estou pronta! Vamos pra escola, mamãe.
Desfizeram o beijo e viram a filha vestida com a fantasia de princesa do seu aniversário na porta da cozinha com o eterno companheiro de pelúcia nas mãos. Depois de algumas risadas, começaram a árdua tarefa de explicar para a menina que precisava vestir o uniforme da escola, além deles mesmo se arrumarem para seus respectivos empregos.
* * *
Aline chegou na delegacia um pouco atrasada, mas como seu chefe estava ocupado em sua sala nem percebeu e ela pôde se dedicar a revisar as investigações em que estava trabalhando. Ela estava com dificuldade de se concentrar, pensando na irmã. Tentara ligar para ela duas vezes, mas a ligação caiu na caixa postal.
Estava tão entretida em seus pensamentos que levou um susto quando Daniel chegou batendo com o jornal em sua mesa.
- Onde essa porra de cidade, vai parar?
- Bom dia, pra você também Daniel. - ela falou sem lhe dirigir o olhar. Estava acostumada com o jeito do colega.
- Bom dia é o cacete! Olha só que absurdo na capa desse jornal de hoje!
Aline pegou o jornal, um daqueles que se refestelam com a desgraça alheia e se você o espremer poderá ver o sangue escorrendo dele. Na primeira página, uma foto de um homem retalhado em cores bem vivas sob a manchete: “PROMOTOR QUASE VAI PARAR NA VALA DE INDIGENTE”.
- Dá pra acreditar? Um dos poucos promotores decentes dessa cidade acabar desse jeito?
- Diz aqui que só reconheceram ele por causa da aliança que ele ainda usava.
- Eu li. Se não fosse por isso ele teria ido pra vala como um indigente. Impressionante, né?
- Mais impressionante é nenhum vagabundo ter arrancado o dedo dele pra roubar a aliança.
A porta do delegado se abriu, dando passagem ao próprio, acompanhado de um jovem arrumado, de olhos cabisbaixos. Os dois se aproximaram da mesa de Aline. O delegado cumprimentou os agentes, dando-lhes bom dia, ao que foi retribuído e apresentou o rapaz ao seu lado como sendo Alan, um “carne-fresca recém-saído da Academia de Polícia, pedindo a eles que apresentassem a delegacia e mostrassem como tudo funciona por ali.
Aline se levantou para cumprimentar o novo colega e notou que a mão dele estava suada, e que ele evitava olhar nos olhos dela ou dos demais, mantendo o olhar baixo. Lembrou-se do seu primeiro dia, e como se sentiu nervosa e ansiosa.
- Então ele é o “fraldinha” que mandaram pra cá? - Daniel disse alto batendo no ombro do novato.
- “Fraldinha”? - repondeu Alan, soltando a mão de Aline.
- Liga não. É o apelido da sua turma. O grupo mais jovem a ter se formado na Academia nos últimos anos. Não tinha ninguém com mais de trinta na sua turma, não é? - Aline interveio.
O rapaz acenou a cabeça, concordando.
Um outro agente deu um aviso para Aline interrompendo a conversa.
- Vamos novato, você vem comigo pegar um depoimento. Mas bico calado. Hoje você só observa e faz anotações.
* * *
O tal depoimento foi de um senhor Maycom dos Santos, apesar de que chamá-lo de senhor era algo estranho, já que ele não tinha mais idade do que Alan. Era a respeito da morte brutal do seu pastor. A vítima foi encontrada carbonizada no centro da pequena igreja que ele presidia.
Assim que o depoente entrou na sala, Aline notou as olheiras e olhos inchados como quem chorou muito e dormiu pouco.
O depoimento dele não estava acrescentando muito às informações que eles já haviam coletado. Confirmou os conflitos da vítima com um grupo de travestis que fazia ponto de prostituição próximos da igreja, por causa dos discursos inflamados em suas pregações. Pregações essas que também condenavam os traficantes que alimentavam o vício de drogados nas ruas ao redor. Informações que já haviam sido fornecidas pelos outros fiéis.
O diferencial era que, ao contrário dos fiéis ele não acreditava que estes grupos tivessem qualquer ligação com a morte do pastor Wanderson. Segundo ele, apesar das ameaças, os travestis não teriam inclinação para um ato tão hediondo quanto queimar alguém daquele jeito, e já fazia mais de um ano que era o depoente quem tomara a frente do trabalho de evangelização dos adictos, e, por isso, ele seria um alvo muito mais provável dos traficantes do que o pastor.
Aline sentiu que havia algo mais. Alguma coisa que Maycom ficava relutando se deveria ou não falar. O esfregar constante das mãos, o olhar baixo e hesitante, eram sinais gritantes. Mesmo assim, sabia que não poderia forçar diretamente sob risco de perdê-lo. Sabia que precisaria criar confiança e acolhimento para que ele se abrisse.
Só que foi muito mais fácil do que ela esperava. Bastou segurar nas mãos dele e perguntar em voz baixa e pausada se havia mais alguma coisa que ele gostaria de acrescentar para que ele agarrasse sua mão e começasse a falar “só porque ela era cristã.”
E contou que após a morte do pastor, descobriu que as contas da igreja não batiam, havendo depósitos muito acima dos recolhimentos nos cultos, mesmo com o pastor declarando nunca haver dinheiro para ampliar os projetos sociais. Além disso, quando começou a fazer as visitas caseiras para o aconselhamento espiritual, como o pastor fazia, as fiéis lhe confidenciaram que ele tinha “comportamentos inapropriados” com elas
Por fim, ele disse emocionado que tomar conhecimento deste outro lado do homem que havia salvado sua alma das drogas era como se ele houvesse morrido uma segunda vez.
* * *
Após o depoimento, Aline pediu para Alan ir iniciando o relatório enquanto ela ia fumar um cigarro. Fez isso não apenas porque este tipo de tarefa era delegada aos novatos, mas porque ela viu a quantidade extensa de anotações que ele fez.
Do lado de fora da delegacia, como sempre, ela acendeu o cigarro, deu uma tragada, e deixou-o queimar entre os dedos. Ela não tinha realmente o hábito de fumar, apenas aproveitava a pausa que isto proporcionava para se afastar de toda a pressão e stress de seu trabalho para arejar a cabeça, colocar os pensamentos em ordem. Naquela tarde específica, ela queria aproveitar esses minutos para tentar falar com sua irmã.
Apenas quando seu cigarro já queimara até a metade é que sua ligação obteve resposta.
- Alô? - atendeu uma voz sonolenta.
- Leila!? Onde estava? Tentei te ligar várias vezes e você não atendeu. - disse um pouco mais alto do que pretendia.
- Eu estava dormindo. O remédio que o médico receitou me derrubou.
- Você está bem? - perguntou com a voz um pouco mais controlada.
Ouviu um som de choro por alguns minutos. Sua irmã soluçava e fungava, aparentemente sem conseguir responder.
- É claro que você não está bem. Pergunta idiota.
- Ai, Aline. As vezes eu acho que nunca vou parar de chorar. Eu tenho medo de me afogar em minhas próprias lágrimas.
Aline se segurou para não dizer o quanto aquele comentário era melodramático. Sua irmã estava sofrendo e não queria piorar as coisas. Mas não sabia muito bem o que dizer para confortá-la. Sempre fora Leila quem cuidara dela e não o contrário.
- Oi, Sir Thomas. - Leila disse de repente, parando de soluçar.
- Quem é Sir Thomas, Leila? Tem alguém aí com você?
- É o meu gato, você lembra dele?
- Você está falando daquele gato preto insuportável que me odeia? Claro que lembro.
- Não fala assim dele. Não sei se suportaria passar por tudo isso se não fosse por ele. Não é meu fofo?
O jeito que sua irmã falava, e a forma como o gato ronronava em resposta, trouxe a sua mente a imagem de um antigo desenho animado em que uma menina abraçava os animais com todas as forças.
- Mas Leila, o nome dele não era Tom? Que história é essa de Sir Thomas, agora?
- É que eu achei que merecia um nome mais condizente com o seu porte. Ele é quase um lorde. - respondeu rindo.
Aline acabou rindo também. Ficou feliz com o tom de voz da irmã, mais leve, menos triste do que quando a ligação começou. Talvez aquele gato idiota servisse para alguma coisa, afinal.
Olhou para o cigarro e viu que já estava quase na guimba. Não demoraria muito para virem procurá-la. E não estava com muita paciência para ouvir sermão.
- Leila, eu tenho de ir, mas passo na sua casa mais tarde para tomarmos um café, pode ser?
- Está bem. Eu também tenho que ir. Sir Thomas se meteu debaixo da cama e está miando abeça. Acho que está com fome, o coitadinho.
- Você mima demais esse gato. - Aline riu. - Te vejo mais tarde. Beijo.
- Até mais tarde, mana. Beijo.
Quando Aline voltou para sua mesa, seus pensamentos ainda estavam com sua irmã, falar com ela não diminuiu a angústia que sentia desde que acordara naquela manhã. Talvez por isso, não escutou de primeira quando Daniel a interpelou.
- O Fraldinha aqui estava me atualizando sobre o depoimento. - disse em tom jocoso, apontando para Alan. - Quer dizer que o tal pastor não tinha nada de santo?
- É o que parece. Ainda temos que checar, mas agora temos duas linhas de investigação. O assassino pode ser um dos maridos traídos, ou alguém envolvido em qualquer fraude de onde ele tirava os grandes volumes de dinheiro.
- Você quer saber o que eu acho?
Aline respirou fundo, e olhou primeiro para Alan, como se dizendo “vai se acostumando que a peça é essa mala sem alça todos os dias”, para só depois se voltar para Daniel.
- O que você acha, Daniel?
- Eu acho esses pastores são todos uns pilantras que se aproveitam desses evangélicos pra tomar uma grana e conseguir o que mais quiserem.
Nesse momento, Alan que permanecera calado, levantou-se de repente.
- Pois o senhor fique sabendo que na minha igreja é bem diferente. O meu pastor e eu trabalhamos juntos para recuperar crianças abandonadas e abusadas, dando a elas acesso a educação e acolhimento as custas de doações e muito trabalho voluntário. Agora se me dá licença, vou arrumar essas pastas no arquivo.
E saiu com um bolo enorme de pastas nas mãos. Aline tinha certeza de que ele tremia, e quando ele já estava distante, voltou sua atenção para Daniel, que permanecia boquiaberto e sem fala, um feito até hoje só conseguido pelo delegado na base da autoridade.
- E não é que o Fraldinha tem bolas? - disse por fim. - Gostei do garoto.
* * *
No caminho para a casa de sua irmã, Aline se sentia cansada. O dia fora corrido, e curto demais para fazer tudo o que precisava ser feito, como sempre. As pessoas reclamam da polícia não fazer nada, mas não fazem ideia do quanto os policiais trabalham. Mas com tão pouco pessoal e recursos era impossível dar conta de tudo.
E além do seu trabalho normal, ainda teve que acompanhar o novato. Ainda mais depois dele e Daniel terem se estranhado pouco antes do almoço. A partir disso, ele grudou nela e perguntava tudo e mais alguma coisa.
No final do expediente, ele pegou sua mão e disse o quanto estava feliz por ter encontrado uma alma cristã como ela para ajudá-lo nessa nova fase de sua vida. Ao que Daniel, depois que o novato se afastou, comentou, do seu jeito peculiar, que ela havia adquirido um admirador.
Mas, enquanto dirigia, ela não conseguia parar de pensar nesse comentário dele. Um depoente mais cedo também a chamara de cristã. Logo ela que fazia anos não pisava em uma igreja.
Uma olhadela pelo espelho retrovisor deu-lhe a resposta na forma da pequena cruz de ouro em seu pescoço, e um sorriso triste surgiu em seus lábios. O que para Maycom e Alan simbolizava adesão ao grupo dos cristãos, para ela era uma lembrança de sua mãe. Lembrou-se qual fora a última vez que pisara em uma igreja, na missa de sétimo dia dela.
Enquanto estacionava o carro pensou no quanto gostaria que ela estivesse ali naquele momento e beijou a pequena cruz, como outrora beijara o rosto da mãe quando esta a acalentara no meio da noite após um pesadelo.
* * *
Na natureza, alguns animais aprendem a pressentir quando há um predador a espreita, pronto para dar o bote. Foi essa a sensação que Aline teve ao descer do elevador no andar da irmã. Apesar de seus olhos não perceberem nenhuma ameaça, seu trabalho na polícia civil a ensinou a confiar nesses instintos. Por isso, discretamente pegou a arma em sua bolsa, usando esta para escondê-la.
No exato momento em que tocou a campainha de Leila, a porta do apartamento vizinho se abriu e uma senhora enrugada saiu de lá como um rinoceronte em fúria.
- Aline, querida! Há quanto tempo! Você engordou.
- Oi, dona Doralice. Uma boa tarde para a senhora. - ela respondeu, enquanto tocava a campainha pela segunda vez.
- Boa tarde, não, querida. O sol já se pôs, então é boa noite. - e deu uma risada esganiçada, como se tivesse dito uma piada muito engraçada.
- É verdade. Desculpe o meu erro. - respondeu com seu melhor sorriso amarelo.
- Não precisa se desculpar, querida. Vocês jovens estão sempre com a cabeça nas nuvens e não sabem aproveitar o tempo de forma correta.
"Será que eu poderia alegar legítima defesa contra sufocação por chatice se metesse uma bala nela agora?" Pensou e achou melhor guardar a arma antes que a ideia se tornasse tentadora demais. Virou-se de costas para a senhora que continuava a tagarelar.
- Você por favor avise a sua irmã que o seu Marcelo do andar de baixo ligou reclamando que está pingando água no apartamento dele. Eu disse que do meu não podia ser, pois eu não abri nenhuma torneira hoje. Nem tomar banho eu tomei.
"Disso eu não duvido." pensou, e ficou na dúvida se chegou a falar em voz alta. Se o fez, a vizinha não fez qualquer menção de ter se tocado, pois continuou na sua ladainha.
- E esse gato dela? Jesus, o bichinho está miando faz horas. Nem me deixou ver a minha novela em paz.
Quando mexeu na bolsa, Aline viu seu molho de chaves e lembrou que a irmã lhe dera uma cópia da chave de sua casa, e este era o momento perfeito para usá-la.
- Aham, dona Doralice. Pode deixar que darei todos os seus recados para ela. - e bateu a porta praticamente na cara da senhora.
"Que figura."
Sem o falatório constante em seus ouvidos, Aline pôde voltar a escutar os próprios pensamentos e se perguntar do porquê de sua irmã não ter atendido a porta, mesmo ela tendo tocado a campainha tantas vezes. Aquela estranha sensação ainda a acompanhava, porém ao ouvir o barulho do chuveiro, descartou-a como sendo apenas a sua imaginação.
Foi quando chegou ao corredor do apartamento que percebeu algo de errado. O chão estava todo molhado com água que brotava por debaixo da porta do banheiro. Em um impulso correu para tentar abri-la e nem notou o gato preto deitado próximo, arfando.
Depois, quando perguntada sobre como tudo aconteceu, Aline não saberia responder muito bem. Só lembraria que, de alguma forma, conseguira abrir a porta do banheiro, e de dentro dele saíra um enorme volume de água. E que ela vira o corpo de sua irmã, e o agarrou e sacudiu, chamando o nome dela e pedindo socorro.
Mas já era tarde demais.

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