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quinta-feira, 18 de abril de 2013

Nas Cidades da Noite (I)

A coisa se contorceu e grunhiu quando despertou. Naquela viela escura e imunda, dormira pelos últimos quatro dias. Uma verdadeira proeza. Contudo, dormir afastava o frio, a dor e a fome...

Até agora.

Por isso, ergueu-se da sombra e, como sombra, moveu-se. Precisava saciar seu desejo antes que não tivesse forças para nem mesmo andar. Deveria encontrar algo ou alguém... E logo. Não aguentava o rugido constante em suas entranhas. Cambaleando, saiu da escuridão total para a noite, e foi logo ofuscado. Odiava o contraste luminoso que dominava a hora. 

Com a visão embaçada, avistou um alvo e, deixando um rastro de muco e sujeira em seu caminho, começou a perseguição. Já estava se deleitando com a expectativa.

Rita, infelizmente, não apreciaria os próximos minutos, por sua vez.

Tinha deixado o trabalho muito mais tarde que o esperado - uma dúzia de clientes apareceram na última meia hora de funcionamento da lancheria e, jovens, loucos e bêbados, pediam, pediam e pediam. Homens e mulheres com a mesma idade de Rita, mas com dez vezes mais dinheiro e cinco vezes menos bom senso. Apesar disso, o gerente segurou todos os funcionários além do horário para atender àquela gente... Prometeu um bônus no final do mês, mas ninguém gostou da ideia. Principalmente, Rita. Ônibus, naquele horário, nem em sonhos, e ninguém com veículo próprio morava na mesma direção que ela... Como não gostava de abusar da boa vontade de ninguém, voltou sozinha e a pé.

Por um bom tempo, nas ruas vazias, o único som que ouvia era o raspar da sola do tênis com a calçada. Pensava em muita coisas - muita coisa ruim - e isso a distraía. Distraía demais. Queria largar o emprego, ganhar dinheiro, ter uma vida digna, estudar mais, ganhar mais dinheiro, ser respeitada, viver e--!

Isso era a frustração e o cansaço falando. 

Logo, outro falaria.

No seu passo normal, ainda teria que caminhar mais quarenta minutos até sua casa. Entretanto, talvez diminuísse significativamente esse tempo; quatro minutos atrás, passou a acelerar o passo. Na última esquina que virou, estava concentrada o suficiente para perceber que, no limiar da sua audição, abaixo do som de sua respiração e de seus próprios movimentos, havia algo mais.

Algo deslizando. Algo ofegando. Algo mancando.

Algo caçando.

Provavelmente, era coisa da sua cabeça... E, mesmo que não fosse, outras pessoas devem estar na rua, a despeito do horário. É normal. Mesmo que, até agora, ela não tenha visto um outro transeunte que fosse... Normal, não é?

Novamente, se viu distraída. Desta vez, contudo, era assolada para uma sensação opressora e por uma lembrança antiga... Algo da época do colégio... Como era aquele poema que a professora inseria trechos em qualquer papel que entregasse a eles? Envolvia um tigre... E "as florestas da noite".


E as "fibras de seu coração".


O temor era algo palpável, agora. Era jovem, era mulher e estava sozinha. O contexto poderia ser pior? E, no momento, não tinha uma porta para bater ou algum lugar, um boteco que fosse, para entrar e esperar. 

Esperar seu coração voltar a um batimento humanamente possível, isto é.

Não tinha, da mesma forma, alguém para ligar para encontrá-la pelo caminho; deixou todos os parentes para trás, no passado, na "profunda caverna" que eles se recusavam a abandonar. E, nos últimos dois anos, não dividiu sentimentos e camas com homem ou mulher por mais do que algumas horas. Estava sozinha. 

Não. Sozinha, não.

Por todo esse tempo, não teve coragem de se voltar e ver se, de fato, alguém a seguia. Porém, agora, aquele som era mais próxima, mais pungente... E avassalador. Já podia ver a rua do prédio no qual morava, de onde estava, mas quinze minutos, naquele ritmo, separavam-na da salvação.

Lembrou com ódio daqueles desgraçados que a prenderam no trabalho. Como odiava quem podia mais. Como odiava quem tinha tudo que ela nunca teve. Como odiava depender de algo tão baixo para seguir em frente. Como odiava, sobretudo, a si mesma.

Virou-se.

A coisa-sombra se avolumou sobre ela.

Ardeu fogo em seus olhos. E, excitado, ofegante e salivando, dirigiu-se a ela.

— Ô, moça bonita, me dá um trocado?!







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