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terça-feira, 2 de abril de 2013

Livro vermelho.

Bloqueio. 
Não consigo pensar em outra palavra. Parece que minha mente está infectada por um vírus que nubla meus pensamentos, minha criatividade. São meses sem produzir nada. Passos horas em frente ao computador, apenas tateando o teclado, mas, invariavelmente, o cansaço me vence.
Como reverter um apagão mental? Como recuperar minha escrita? As contas começam a acumular e eu não sei - literalmente - o que fazer. Escrever é minha profissão. Logo, estou desempregado.
Viajei, isolei-me e li outros autores para buscar uma ideia, por menor que fosse. Tudo em vão.
Entretanto, não foi apenas a inspiração que sumiu da minha vida. Meu marido não suportou tantos meses de stress e reclamações. Eu virei uma bruxa para ele e isso me custou o casamento. Agora, sem muito a perder, vou recorrer a tudo que me resta para recuperar as letras e a dignidade. Custe o que custar.
Eu voltarei a escrever...

Martha é uma mulher de meia-idade. Ela não gosta de admitir, porém os sinais já são visíveis. Pequenas rugas que insistem em permanecer ali, dia após dia. A impaciência também é uma característica nova que está lhe rendendo maus frutos. Muitos amigos estão distantes por causa de seu 'humor'. Ela reconhece isso. Ela nada fará para mudar...

A mulher olha para a tela do monitor. Seus dedos deslizam pelo teclado e não há força suficiente para que surja uma única letra. A lata de feijão em conserva já tem sinais de mofo. A casa cheira a bolor e umidade, suor e fluidos corporais. Porém, nada irá removê-la daquele lugar enquanto seu livro não começar. É questão de honra...

Um dia, nublado e cinza, Martha sai de sua prisão e vai comprar comida. A mente dói demais, tamanho é o esforço que vem fazendo continuamente. Ela é teimosa (como toda mulher deveria ser) e não tão simples derrubá-la. As forças ainda existem e são suficientes para mantê-la no front. A luz incomoda demais seus olhos, provoca dor. 
Ela caminha por longos minutos. Não quer a companhia de ninguém. Desligou o celular por causa disso e não mais lê as correspondências ou e-mail. Ela se tornou bruta com o passar dos dias e noites. 
Suas mãos empurram a porta de acesso à loja. Martha não olha para ninguém, o que não significa que os outros não a vejam. Na verdade, eles a sentem. Há medo no ar. Com os cabelos desarrumados, olhos injetados e um andar lento, a outrora atraente Martha provoca arrepios. Pessoas saem de sua frente para abrir passagem...

Um homem está parado. Ele a fita nos olhos. Não há o mesmo medo visto por ela nas outras pessoas. Ele, ao contrário, parece ter prazer ao ver o que restou da mulher. 
Os dois emparelham ombros, quase se tocam. A geladeira é aberta, porém o frio que sai é sugado instantaneamente, como mágica. Ela sente calor, sem que haja desconforto. 
O silêncio reina por ínfimos segundos. Então, ele diz:
- Você precisa ouvi-los. Nada mais. Ouça-os e terá de volta o que quer.
Martha vira os olhos em sua direção, porém não há nada. O homem era uma alucinação. 
Não. O homem era uma inspiração...

- Onde? Onde estou?
O menino não sabe o que o aguarda. Suas pernas tremem e a sensação de terror o domina. 
Passos. Ele ouve passos, mas nada pode ver. Os olhos estão vendados com um pano ou algo parecido.
- Olá! - diz uma voz feminina.
- Oi. Moça, por favor, me solte. Eu não fiz nada de errado. - disse o pequenino entre lágrimas.
Um ar quente o atinge. É a respiração da mulher. Ela tem hálito de coisa estragada, um cheiro ruim.
- Menino, menino. Quero que me ajude em um trabalho. Você pode? - ela questiona.
- A senhora promete me tirar daqui? Eu não fiz nada errado. 
- Claro. Eu já entendi que não fez nada de errado. Fique ranquilo. Você me ajuda também? Podemos fazer uma troca.
- Tudo bem, moça. 
- Meu nome é Martha.
- Sim, dona Martha. Eu ajudo a senhora. - respondeu, mesmo ainda dominado pelo pânico.
Ela se afasta. Há sons de metal. Algo sendo passado em um esmeril. O menino não consegue entender o que está se passando.
Martha se aproxima novamente e diz:
- Meu anjo, preciso que me conte o que mais teme. Em detalhes. Qual é seu maior pesadelo. Depois, vou precisar de sua cooperação para entender melhor como é que uma criança reage à dor. Também em detalhes. Você vai me ajudar?
- Claro, moça. A senhara vai mesmo me tirar daqui.
Ela esboça um sorriso ao ver o corpo nu do menininho. As lágrimas marcam o rostinho com sardas. Com uma câmera, ela começa a filmar o depoimento do garoto e tudo que mais virá.
- É uma promessa, meu menino. - disse Martha. - conte-me agora seus medos em detalhes e, após, você sairá daqui.
- Obrigado, moça.
- Não agradeça. Já estou gravando. Pode falar.
O menino contou tudo em seus mínimos detalhes. Até inventou alguns. Entretanto, o que ele não poderia ter visto era a enorme e afiada faca que estava ao lado da mesa onde ele fora preso. Martha cumpriria sua palavra, só que do jeito dela...

Muitas foram as vítimas da mulher. Cada uma sofreu mais do que a outra. Através do sofrimento e do medo, a escritora colheu os mais coerentes depoimentos sobre a dor e o pânico. Ela vivenciou e esta experiência foi fundamental para que sua obra definitiva fosse concluída. 
Um livro escrito com sangue. Não o tradicional clichê de um livro escrito com letras de sangue. Nada disso. O livro vermelho era um romance feito com base em depoimentos coletados por meio de tortura, paciência e loucura. Martha elaborou um compêndio capaz de alegrar os torturadores que atuam no Inferno. 
Mas o homem que lhe sussurrou, tempos atrás, havia lhe ensinado uma lição cuja execução era fundamental para a conclusão da obra literária. Era chegada a hora...

A câmera foi acionada. A luz incomodava, mas era necessária por causa da iluminação local péssima. O computador também emitia luz e, mesmo de longe, Martha pode ver o cursor do mouse piscando. A máquina aguardava novas palavras, novos depoimentos, sem saber que aquele era o dia para encerrar a coleta de depoimentos. Martha observava a tudo, curiosa. Ela transpirava demais...

- Hoje, concluímos nosso trabalho e a obra que irá colocá-la na História. - disse o homem-alucinação, a voz que guiou Martha por tantos meses.
- Fiz bem meu trabalho? - ela questionou, mesmo já sabendo a resposta.
O homem a encarou e frisou "Foi por isso que a escolhi. Só você era capaz disto".
Ela inspirou e tremeu. O bisturi rasgou o pulso esquerdo impiedosamente, mas não houve gritos. Não hoje.
As palavras começaram a ser ditadas para um gravador digital. Logo seriam transpostas para o arquivo de texto aberto no PC.
As demais incisões, queimaduras e suturas foram lentas e cruéis, porém necessárias. O final se aproximava.
Martha levantou e trouxe o gravador para mais próximo de si. Sua mente estava absurdamente aberta, as ideias fluíam como em uma cachoeira. Milhares de cenas, imagens e possibilidades transitavam diante de seus olhos. Inspiração em doses maciças.
O livro estava concluído...

Eles encontraram um caos. Não havia nada em seu lugar. Pães mofados, pratos de comida com restos já em decomposição e o corpo já apresentando sinais de apodrecimento e roxo em alguns pontos. Os investigadores não entenderam nada até que leram o arquivo digital e ouviram o mp3 com o relato. Parecia improvável, mas a verdade é que um dos mais longos ciclos de assassinatos havia se encerrado e a responsável por eles foi quem forneceu as provas. Ela matou indiscriminadamente para escrever um livro e, por esse mesmo livro, tirou a própria vida. Seu corpo estava podre, com inúmeros pedaços cortados ou amputados. Ela resistiu bravamente, talvez motivada por uma loucura sem par. Era o fim de uma vida que atingiu um abismo tão profundo que não deu opção de retorno. Era o fim da vida de Martha, a co-autora do Livro Vermelho...


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