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sábado, 23 de fevereiro de 2013

O Demônio.




Por: Bruno Vox
Ele corria como não houvesse outra coisa no mundo, apenas corria, corria para se salvar.
Olhou para trás e viu o vulto. Ainda estava o perseguindo.
Desceu umas escadas de ferro pulando alguns degraus, quase caiu, mas se equilibrou segurando nas barras de apoio e conseguiu se manter de pé.
Era jovem, não mais que vinte e cinco anos, praticava exercícios e tinha boa saúde, mas seu coração disparava como se fosse explodir, seu peito doía, os pulmões estavam exaustos, não aguentava mais correr. Suava bicas, ofegava como se estivesse correndo a mais tempo do que suportaria, o que era verdade. Aquele... bem, ele não sabia o que era, um homem? Talvez. Quando foi abordado por esse ser, podemos dizer assim, na saída da boate, conseguiu ver de relance seus olhos que brilhavam um vermelho amarelado intenso como brasa acesa. 

Acabou de descer as escadas e por um instante parou para ver para onde seguiria em sua fuga. Ali era o galpão inferior da antiga fábrica, estava deserto, o maquinário havia sido vendido quando fora a falência. O rapaz sabia disso, conhecia aquele lugar, já havia estado ali, por isso correu para aquela direção nas ruas desertas da cidade, na madrugada fria e assustadora. O lugar lhe parecia ótimo para esconder, parecia acolhedor em sua memória.

O lugar fedia a óleo e graxa, um aroma acre, era nauseante, mas não para ele, ele gostava daquele cheiro, se sentia bem. A luz da lua cheia a oeste entrava nos vidros das enormes janelas da fábrica e iluminavam parcialmente o pátio em questão. Ele lembrara de umas salas que ficavam ao fundo, as portas eram reforçadas, se tivesse sorte, talvez pudesse se esconder dentro de uma delas até o perseguidor desistir e ir embora já que estava exausto demais para continuar correndo e não sabia mais para onde fugir.
Seu pedido de socorro não foi atendido, mesmo com a gritaria que promoveu nas ruas e becos em que passou, seu celular não funcionava, as casas e lojas que se deparou pelo caminho estavam fechadas e com as luzes apagadas, não viu ninguém, parecia que todos haviam desaparecido da face da Terra.
Do outro lado do prédio entrou em uma das salas, mas a trinca da porta estava quebrada, saiu e tentou outra, nessa nem havia porta. Olhou para ver onde estava o maldito que o perseguiu, não viu ninguém. Em vez de ficar aliviado, ficou mais consternado, antes ele sabia onde o monstro estava, agora poderia estar em qualquer lugar.
Tentou entrar na próxima, mas estava fechada, forçou, mas não conseguiu abri-la.
Só havia mais duas salas daquele tipo. Correu até elas, uns sete metros, mas o percurso pareceu-lhe quilômetros. Estava angustiado, amuado, se sentia um verdadeiro covarde, não sabia muito bem porque daquela corrida ao avistar o perseguidor, foi instintivo, sabia que precisava fugir quando o olhou e isso o perturbava. Era um rapaz forte, tinha um metro e noventa e um. Sempre fora robusto e alto, na escola metia medos nos colegas, era respeitado, foi assim também na faculdade e onde mais frequentava, mas hoje, o jovem parecia mais um rato fugindo de uma cobra.
Chegou frente à sala da esquerda e a porta estava somente encostada. A empurrou para abrir.

A porta de ferro fez um barulho alto ao ser aberta, a ferrugem estava corroendo as juntas. Ele entrou na sala e não viu muita coisa, a posição dela não permitia que a luz da lua ajudasse. Mas não importava muito, claro ou escuro, ver ou não, só queria estar longe do seu perseguidor, só queria estar a salvo.
Testou o trinco e viu que estava em ordem. Fechou a porta e empurrou o enorme trinco. Deu dois passos para trás e desabou sentado no chão. Respirou fundo e tentou se acalmar. Mesmo ali não tendo janela o ar congelante da noite de outono entrava por debaixo da porta e como estava próximo dela começou a sentir frio. O seu suor só piorou a sensação. Vestia só uma camisa de malha na cor preta com uma estampa de um crânio na cor branca e uma calça Jeans, seu tênis era surrado, mas de marca. Sentia falta de sua jaqueta que jogou fora no meio de sua fuga, não se lembrara onde a descartou.

Abaixou a fronte e pôs as duas mãos no rosto e começou a chorar. Chorou muito, jogou toda sua angustia e medo para fora, soluçava descompassadamente. Sua aflição era maior do que a situação, muito maior, e ele não entendia o motivo dessa angustia, desse aperto no peito, nesse nó na garganta como quase se alguém tentasse arrancar seu coração por ela.
O choro parou, os soluços diminuíram, havia se acalmado um pouco. Levantou o rosto e correu o olho pelo lugar, mas não conseguiu ver nada, a sala estava num breu intenso. Agora se sentia seguro, talvez o perseguidor houvesse desistido depois que desceu até o pátio da antiga fábrica, não havia visto ele depois disso, pensou. No entanto, não sairia dali tão cedo, não antes que o sol surgisse ao leste.
Não tinha forças para se levantar e nem queria, sentia-se bem ali, sentado como estava. Ouviu um guinchar de um rato, mas nem ligou, aquele lugar deveria estar infestados deles e seria inútil ficar incomodado, e aquilo perto do problema que enfrentava pareceu tão pequeno que outrora sentisse um asco enorme por aqueles roedores, agora até adotaria se conseguisse se livrar desse pesadelo.
Uma hora se passou e ele começou a cambalear a cabeça. A adrenalina abaixou e o sono finalmente chegou. O suor havia secado e a sensação de frio diminuído. Estava exaurido, precisava dormir, gastara muita energia e não achou ruim um cochilo já que até agora o perseguidor não havia dado sinal de vida.
Colocou seu tronco para trás, esticou as pernas e colocou as mão cruzadas no peito. O olho fechava e abria lentamente, a pálpebra pesava uma tonelada. Agora estava deitado, iniciando o primeiro sono, mas ouviu um barulho diferente, como de passos firmes e pesados, abriu os olhos assustado, quando as imagens tomaram forma em sua visão meio adormecida viu os olhos em brasa do seu perseguidor. Em um instante já estava de pé na porta tentando abrir o trinco enquanto o perseguidor o observava com terrível atenção.
Tentou uma. Duas vezes. Até conseguir abrir a porta. Puxou a porta tão rápido quanto podia e saiu daquele lugar. Estava atônito. Como ele havia entrado? A porta ainda permanecia fechada. Tentava entender a situação, mas nada racional lhe vinha à mente, também não era hora para isso, precisava fugir, tão e somente.
Ao sair tropicou e esborrachou no chão, rasgou a camisa e ralou um pouco o peito, mas nem se deu conta, imediatamente levantou. O seu algoz estava muito perto dele, tão perto que ele podia ouvir sua respiração suja e abafada. Ele olhou para trás e viu a proximidade dos olhos em brasa, ainda não conseguia distinguir a fisionomia do perseguidor, só enxergava vulto, talvez pela pressa com que espiara ele ou pelo calor do momento, pela adrenalina, de qualquer maneira até agora o seu algoz era somente um vulto. 
Deu mais alguns passos em correria e viu a porta que tentou abrir e não conseguiu. Em um ato desesperado se jogou contra o ferro. Não adiantou. Mas na pancada ele sentiu algo em seu bolso. Tirou, não enxergava direito, a lua já havia subido e aquele lugar estava mais escuro. Tateou, era frio. Uma Chave. Ele não se lembrara de ter nenhuma chave daquele tipo, tinha quase dez centímetros, ponderou. Enquanto divagava por um instante se esqueceu do motivo que estava fugindo, mas logo se lembrou e olhou para trás. Não havia ninguém em seu encalço. Deu um suspiro longo e assustado, mas ainda estava em uma situação difícil, alguém, não, corrigiu-se, aquilo, seja lá o fosse não era desse mundo, não poderia ser, definitivamente não era humano. Mesmo vendo seus olhos braseiros ainda nutria uma esperança de que aquilo fosse sua imaginação, uma ilusão promovida pelo medo repentino.
Começou a correr para frente. No entanto, algo lhe fez parar, uma sensação. Apertou a chave com força na mão e voltou até a porta. Mesmo naquela escuridão achou a fechadura da porta e a enfiou. Esperou alguns segundo até rodá-la. CLECK. Rodou, mais uma vez. CLECK. A porta abriu.
Ele tirou a mão da chave, assustou-se. Não pensava que... – O que significava isso? – indagou baixinho, abismado, estupefato, totalmente perdido em sua mente.

A porta abriu um pouco, o suficiente para exalar um fedor medonho de carne podre. Isso o provocou ânsia de vômito. Pensou em sair dali, nada que viria lá de dentro seria bom. Mas, a sua curiosidade era maior, a chave em seu bolso, a vontade de testá-la, algo o estava impelindo a isso.
Com cuidado abriu a porta, devagar, mas algo impediu. Forçou uma vez, mas não cedeu. Não queria entrar às cegas, queria ver o tinha lá dentro. Mas não teve escolha, na verdade tinha sim, sair dali, fugir, mas não conseguiu, sua curiosidade era maior, queria descobrir o que estava acontecendo.
Respirou fundo a fim de guardar fôlego, aquele cheiro deveria estar dez vezes pior lá dentro, não queria inspirá-lo. E em um pulo passou pela greta entre a porta e parede.
Ao entrar pisou em algo mole, um tipo de gosma, deu uma leve escorregada, mas rapidamente recuperou o equilíbrio. Estava escuro, nada se via. Segurando o fôlego tateou a parede, a fim de encontrar um interruptor, mas sem sucesso, naquelas salas não haviam lâmpadas. Não aguentou segurar mais a respiração e inspirou. 
O fedor não era dez vezes pior, era muito mais. Era horrível, indescritível, mas estranhamente ele a princípio só ficou um pouco zonzo e logo conseguiu se acostumar com a podridão. Acostumar, não gostar.
Andou até o centro da sala. Esbarrou com o ombro direito em algo pendurado. Por algum motivo não se importou com aquilo. Estava no meio daquela sala quando esbarrou em uma mesa de ferro. A tateou, colocou a mão em algo gelado. Uma faca, percebeu de imediato. A pegou para si, pois poderia ser útil contra o perseguidor, pelo menos era melhor do que nada, pensou. Continuou tateando e achou alguma coisa de vidro e metal. Era encorpada, media uns vinte centímetros e tinha uma alça. Passou a mão e viu que a parte de vidro era levemente estufada. Não demorou a perceber que era um lampião. Balançou e pode perceber que havia combustível, chegou perto de seu nariz e deu uma fungada. Querosene. 
Não fumava, mas sempre carregava uma caixa de fósforos, uma precaução mais do que qualquer coisa. Procurou nos bolsos da calça, revirou uma, duas, três vezes até se lembrar que a caixa estava na jaqueta que fora jogada na rua durante a fuga. 
– Maldição! – disse espremendo a palavra entre os lábios.  
Começou a tatear novamente sobre a mesa um pouco mais para ver se encontrava algo para ascender o lampião quando em um relance viu os olhos de brasa do seu perseguidor. Estava dentro da sala, perto da porta. Retirou a faca que estava na bainha de sua calça, não era grande e nem pequena, uma faca de um tamanho médio, que poderia fazer um estrago enorme em qualquer um.
Na escuridão ele se armou em posição, se aquele monstro tentasse algo a única maneira seria atacá-lo. Estava encurralado, se perdera demais na sua curiosidade mórbida, estava sem opções a não ser confrontá-lo.  
Os olhos apensar de parecerem brasas ardentes transmitiam um ar frio, de gelar os ossos, que paralisava qualquer um e foi assim que o jovem ficou. Paralisado. 
O vulto se aproximou, pouco a pouco. 
Já estava perto de um metro dele, começou a suar frio, a tremer o corpo inteiro, suas mãos e pernas estavam como se estivesse amarradas, seu estômago remexia lhe dando ânsia de vômito, sua cabeça girava em um looping infinito. 
– O que é você? – indagou, foi o que saiu de sua boca trêmula.
O vulto parou, era indecifrável a criatura a sua frente, tinha a silhueta de um homem, mas algumas vezes parecia amorfa. Entretanto, os olhos de brasa permaneciam inabaláveis. 
Ao ouvir a pergunta a criatura parou. 
– O que sou eu? – rebateu com um ar de incredulidade a pergunta feita. Não conseguia ver seu maxilar mexer, era como não abrisse a boca, reparou.
Sua voz era como tambores que faziam o peito do jovem balançar a cada sílaba pronunciada. 
O fitou por mais alguns segundos enquanto ele só tremia diante do desconhecido. 
Depois a criatura começou um discurso – Eu sou o demônio, eu sou a encarnação da morte, tenho sede pelo sangue e me agrado no sofrimento, sou aquele que aterroriza o mundo, sou o monstro que assola os campos, sou o destruidor de cidades, sou o mal personificado, sou a quem Lúcifer se ajoelha, sou o ser que mudará esse mundo e inundará os oceanos do rubro sangue dos inocentes, você me pergunta quem sou? Simplesmente... – fez uma pausa.
O jovem arregalou seus olhos negros. Não entendia o que ele queria dizer. O monstro se aproximou lentamente, ele não conseguia reagir ao avanço, estava mortificado, entorpecido pela situação. 
Ao se juntar do jovem, os olhos do vulto começaram a bilhar mais e mais, a brasa ardia com mais intensidade. Olho a olho, encararam-se a um palmo de distância. O jovem conseguia sentir seu cheiro, algo familiar que identificou logo.  
– Simplesmente... simplesmente... eu sou você. – disse o jovem em absoluto tom de desespero.
Aquela figura deu mais um passo e se atrelou ao jovem, os dois eram um, na verdade, era somente um, era só ele, apenas o jovem. 
A fisionomia dele mudou, seus olhos ardiam em um ódio absorto. Calmamente colocou sua mão debaixo da mesa, pegou um isqueiro preso com esparadrapo. Apanhou o lampião e o acendeu. 
A luz revelou um quarto vermelho de manchas e respingos de sangue na parede e no teto. No chão havia corpos, pedaços de gente, cabeças, braços, pés, enfim, membros dilacerados. Também havia peles rasgadas e órgãos espalhados por todos os lugares. Atrás da porta tinha um tronco de uma mulher, era esse tronco que impedia a porta ter se aberto por inteira. Em um canto havia diversas facas e algumas serras, estavam ensanguentadas e também havia uns trapos de roupa limpa e um balde cheio de água perto dali.
 Ele se voltou ao corpo nu de um homem que estava pendurado, aquele que esbarrara, era único naquela posição. Estava amarrado pelos pés, de cabeça para baixo e suas mãos amarradas pelas costas, parecia como um porco em um frigorífico, pronto para ser fatiado. 
Enfiou as mãos nos bolsos e pegou um pote achatado, abriu e pegou um pouco do conteúdo em com o dedo e passou abaixo do nariz do homem que acordou imediatamente. Ele acordou assustado, seus olhos arregalaram ao ver o jovem, tentou gritar, mas não conseguiu, seus lábios estavam cerrados com uma grande fita isolante cinza. 
A chama branda do lampião balançava fazendo dançar nas paredes as sombras dos dois em uma dança que mais parecia um ritual de morte.  
O jovem sorriu descontraidamente. 
– Chegou a sua vez. – disse com ar de contentamento.
Pegou a faca que voltara a bainha de sua calça. Levantou o braço e abriu o estômago da vítima, que ainda vivo observava o sangue escorrer até a sua boca, via as tripas caírem nos seu rosto, passar por sua boca, até não mais conseguir respirar.
Enquanto fazia a maldade o jovem ria, gargalhava, se orgulhava do que via, se deleitava em felicidade ao estripar o homem, aquele era seu lugar, seu refúgio do mundo, ali podia mostrar o seu verdadeiro eu.



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