Pages

sábado, 26 de janeiro de 2013

Da Cor do Ouro.

Por: Carolina Mancini

A poeira decrépita de dias calados e insanamente pontiagudos rodava turvando levemente a paisagem amarelada e quente. O sol vilão e magnânimo reluzia seus cruéis raios sem menor sinal de piedade pintando a terra seca, o céu, e tudo mais que se pudesse ver de dourado, o dourado velho da seca, que muito se desejaria afastar dos dias e dos tempos.
A pequena casa feita de barro refletia o brilho macabro da uma hora da tarde, ao se aproximar, o homem já passado dos seus cinquenta anos, por mais que houvesse se intimidado pelas carcaças dos animais, algumas ainda cobertas de moscas, e pelo cheiro, continuou seu caminho até a porta da casa. Do lado de dentro, a jovem vestida em seu vestido preto assistia a sua chegada e para si murmurou num sorriso:
- Já era tempo!
Ailã era uma bela jovem, dessas de beleza rara, mas que devido a complicações decorridas do momento em que viera ao mundo, com frequência mancava.
Ela abriu a porta sem pressa alguma e encarou, ardilosa, aquele que fazendo barulho com suas botas, adentrou ao escuro ambiente protegido do sol que era a casa da bruxa. 

Austero, mas no fundo desesperado, ele começou um discurso desnecessário sobre o pagamento, que nenhuma quantia seria problema caso sua vontade fosse consumada.
A jovem sorriu, lendo nos olhos do velho seu passado de sortes e cretinices. Não haveria mesmo dificuldades em pagar o valor que fosse. Há muito tempo havia descoberto petróleo na parte que lhe pertencia da vila seca, triste, e levemente afastada onde vivia. E desde então, o ouro preto brotando da terra, fez a fortuna dele.
A moça o fez sentar-se à mesa no centro de sua sala, que possuía aos pés de todos os móveis, violetas e rosas brancas, muitas já murchas. E igualmente rápida, ela serviu um chá de cheiro forte para si e para o velho e acomodou-se em uma cadeira à frente de seu convidado.
- Então vamos lá, homem. Tenho pressa. – disse a bruxa com certo desdém - Como eu posso te ajudar?
Nada que o homem lhe disse foi novidade. Velho e solteiro desejava desposar determinada moça cheia de curvas sinuosas e pele bronzeada, porém, muito jovem e nada ambiciosa.
- Tudo bem, parece muito claro. Mas, então, vamos falar sobre meu pagamento. – ela cortou os relatos cheios de forçado drama do cliente, indo ao que lhe interessava.
- Só dizer a quantia. Se quiser receber até mesmo em ouro, eu o tenho em regalia.
Ailã gargalhou fervorosamente, tremendo seu corpo e jogando sua cabeça para trás. Feito reflexo, os abutres que se dividiam nas refeições de animais mortos atrás de sua casa, voaram para o céu, talvez afugentados, ou para participar do gozo da benfeitora de suas refeições.
- O senhor realmente é muito engraçado, não acha? O que lhe leva a pensar que quero seu dinheiro? Não, homem, isso eu não quero. Quero algo mais valioso, algo que tenha valor para mim... – encarou-o - e para o senhor.
Feito um verme gélido, sua espinha eriçou em receio. Calafrio esse que se manteve a lhe incomodar, ao tempo que o suor do dia quente lhe caia da testa sobre os olhos. 
- Como, por exemplo? – indagou o velho ao enxugar a tez com um lenço, enquanto tentava não aparentar surpresa ou temor diante a jovem.
- Seu filho!
O velho, muito surpreso, buscou disfarçar sua confusão.
- Todo mundo sabe que minha falecida esposa nunca me deu um filho...
- Não, não faça isso – interrompeu-lhe a bruxa. – Eu sei de muito mais coisas do que o senhor imagina. Eu falo de seu filho bastardo.
O velho tomado em ódio levantou-se e desferiu sua raiva em gritaria contra a bruxa:
- Criatura insolente dos infernos, por mim chega, já basta...
E mais uma vez a bruxa gargalhou:
- O que há? Ah, o senhor realmente me subestima. Eu não erro, nem falho. Eu sei que traiu sua falecida, e que Deus a tenha, sofreu tanto coitadinha dela. E sei que não foi só uma vez, e sei que foi com várias mulheres. E de repente, um filho! Um belo varão robusto, forte, moreno de cabelos longos, que por sinal, desconhece toda a história. Não é engraçado, meu senhor?
O coração do velho disparou, mas ele não teve tempo nem de se recuperar, e nem de responder.
- Mas, o que eu quero é muito, muito simples. Mande-o vir aqui durante a madrugada seguida do dia do seu casamento, diga a ele que a bruxa precisa de um favor qualquer. Por volta do meio-dia do dia que nascerá em seguida, ele estará de volta, trabalhando e são e salvo para o senhor.
- O que vai fazer com ele? - Disse o velho ainda assustado.
- E isso lá é da sua conta? – ela deu de ombros. - Bom, meu senhor, esse é meu preço.
O velho ponderou por alguns segundos:
- Escute aqui bruxa, se algo acontecer com meu filho...
- Ah, chega de ladainha, se algo acontecer mande seus capangas virem atrás de mim.
Convencido, o velho concluiu:
- Então, temos um acordo. – mais uma vez ele parou para enxugar seu suor com o lenço já muito úmido – Feito, bruxa!
Ailã levantou-se sem presa, e mesmo mancando, foi com graça até o armário de madeira onde guardava suas ervas e retirou de lá um frasco de vidro repleto por um pó verde.
- É sorte sua – disse a bruxa – que seu desejo é simples, não precisarei de seu sangue – disse ela enquanto sorria com malícia - E nem mesmo matar alguém. - Encarou-o – Chame a jovem para conversar, sirva-lhe algo qualquer para beber e junte à bebida esse pó. Mas, o senhor precisa entender duas coisas: Primeiro, ela será sua até que a morte lhes separe, porém, a morte de um significará a morte do outro. Segundo que, durante sete dias seu sêmen não pode ser introduzido nela...
- Como assim? – Inquietou-se ele em revolta.
- Uma semana! Consumem suas vontades, ela lhe desejará com fervor, porém, durante sete dias ela e o senhor devem se proteger, ela não pode engravidar nesse período, se isso acontecer, o efeito cessará, e o senhor nunca mais conseguirá tocá-la, mesmo casado com ela.
- Mas isto é o de menos... Posso esperar sete dias. Quero saber sobre isto de morte?
- Ah, se o senhor morrer de morte natural, ela morrerá, e o mesmo acontece com o senhor se ela morrer. Mas depois da morte, seus espíritos estarão livres... Mas para que se preocupar? Ela é jovem, cheia de vida, não parece estar doente. E se ela for assassinada, ou sofrer um acidente, ou qualquer coisa assim, nada acontecerá ao senhor. O efeito só funciona para a morte natural. Um falece, o outro também, e vice-versa como reza o encantamento. Está feito?
O suor escorria em cachoeira da testa do velho. Ela insistia.
- Está feito?
O calor tornava-se infernal, muito mais por seu nervoso, do que pelo sol que brilhava ardido do lado de fora da toca da bruxa.
- Está feito? – ela forçava-lhe a resposta.
Dominado por sua claustrofobia e necessidade de abandonar tanto o covil do demônio, como o olhar da raposa que lhe enfrentava, ele assinou seu destino em letras garrafais ao sentenciar:
- Certo, bruxa. Está feito!
E assim, ele partiu.
No mesmo dia, o velho tratou de chamar a moça, e lhe dar o elixir. No dia seguinte, pela manhã os preparativos da festa foram realizados, e durante o cair da tarde, eles se casaram.
O que ninguém viu, porém, é que por todo o tempo, um pequeno gato malhado o seguiu, vendo e ouvindo meticulosamente os passos de seus atos. Um monitoramento de precisão felina, por onde a bruxa acompanhava o desenrolar de sua trama.
Na noite de fato, a bruxa aguardava o chegar do filho do milionário. Ela sabia de sua beleza, de seu belo rosto e corpo, e sabia mais que isso, ela conhecia o rapaz, pois em muitos dias solitários, ela o acompanhou através dos olhos do gato malhado. Certa vez, de pronto, o rapaz havia lhe agradado, e desde então, o gato malhado aparecia com frequência para ele, a fim de receber caricias.
Na madrugada que veio logo após o casamento, a iluminação das velas dentro da casa da bruxa, era a única luz presente, ao invés do dourado envelhecido do dia, reinava alaranjada no tremular das chamas que faziam das sombras das carcaças e das árvores sem folhas, uma dança constante e soturna.
Quando o rapaz chegou, carregando o embrulho do qual desconhecia o interior, resolveu avançar rápido para não se perder em temores diante a imagem cadavérica e truculenta que jazia no quintal de terra seca. Do interior da casa, além da luz alaranjada e fraca, uma música leve e misteriosa brincava com sua mente sob as estrelas radiantes e a noite de lua cheia.
Ao chegar à porta, percebeu-a entreaberta, ao espiar, sucumbindo a sua curiosidade, mas hesitando um tanto ainda por medo, viu a bruxa tão falada, diferente do que diziam, não era velha, pelo contrário, era uma linda jovem de longos cabelos negros como petróleo, sentada em um banco de madeira. A bruxa deixava à mostra suas canelas e pés delicados que o vestido não cobria, além de seus braços e lindas mãos que tocavam uma viola enquanto cantava.
Mas de pronto, ela sentiu a presença de quem aguardava e parou a canção.
- Entre. Estava mesmo te esperando.
O jovem envergonhado entrou na casa buscando firmeza em seu âmago. Era encantador vê-lo tão de perto. Seu cabelo negro, amarrado com uma fita, deixava pender à frente do rosto umas duas ou três mechas mais rebeldes. Ele sorriu, mais pela vergonha e surpresa, do que por se sentir à vontade.
- Bom, - disse ele – aqui está o que o chefe lhe prometeu. Se me permite, já vou indo.
- Não, na verdade, não permito. – Disse a bruxa deixando a viola ao seu lado. – Preciso falar contigo, não vai levar muito tempo. Seja lá o que tem nessa caixa, não me interessa.
Tranquilamente ela fechou a porta atrás do rapaz, abriu uma gaveta, retirou uma carta e um envelope, e entregou apenas a carta:
- Essa letra lhe é familiar?
O jovem pegou a carta nas mãos:
- Sim, mas como. Parece a letra da minha mãe. – e desconfiado inquiriu – Você fez isso?
- Não, de forma alguma – respondeu ela – meus poderes não chegam a tanto. Veja isto – e do envelope retirou uma foto com duas mulheres e um menino – Sabe quem são?
O jovem olhou aturdido e curioso.
- Sim, esse sou eu quando pequeno, esta minha mãe, e esta mulher me é familiar, mas não muito. Como tem essa foto?
- Essa mulher – disse a bruxa – de quem você não se recorda é minha mãe. Ou a velha bruxa que viveu nessa casa. Bom, quanto ao resto. Melhor você ler a carta.
O jovem compenetrado mergulhou naquelas linhas, as linhas que foram encaminhadas à velha bruxa amiga de sua mãe, que diziam sobre quem era seu pai, sobre querer revelar as verdades ao seu filho, e as ameaças de morte.
A reação do jovem foi de pavor, surpresa, raiva, ele até mesmo levantou-se de sobre salto e quis ir até o velho, mas a bruxa o impediu.
Não perca a cabeça, não agora. Além dessa carta, eu não tenho nenhuma prova, entende?
O jovem concordou com a cabeça, e durante um longo tempo ficou envolto em seus pensamentos. Ao voltar à realidade olhou firmemente nos olhos da bruxa:
- Mas porque resolveu me contar tudo isso?
Ela sorriu:
- Acha que nós, bruxas, só agimos em troca de favores? Nem sempre! - Um miado vindo de fora se ouviu. – Ai esta sua resposta. - E o gatinho rajado entrou na sala, roçando nas pernas do rapaz. – Digamos que eu... tenho lhe observado, e sua pessoa me apetece...  – sorriu – Quer um pouco de chá de ervas? Eu juro que não está enfeitiçado.
Horas se passaram, e os encantos naturais de seus hormônios criaram a magia.
Na noite seguinte, o vento soprava forte e severo feito um uivo longínquo e solitário. Era a noite perfeita para o próximo passo.
De dentro de um frasco com pequenos furos na tampa, Ailã libertou uma linda borboleta preta e azul, que voou com a ajuda do vento até o quarto onde dormia a jovem enfeitiçada. A borboleta pousou sobre os lábios da moça, extenuando seus batimentos cardíacos e na manhã seguinte, ela estava, naturalmente, morta. O velho, quando a encontrou, teve tempo apenas de deixar verter uma lágrima, e logo caiu ao chão.
A notícia do falecimento de ambos correu rápida, e cinco madrugadas após as mortes, a bruxa saiu de sua casa e caminhou sob o brilho do sol até que seus passos a levaram aos fundos da pequenina igreja da cidade onde, sendo ali o único cemitério, os corpos foram enterrados. Não foi difícil encontrar o túmulo da jovem que já se movia freneticamente desesperada dentro da cova acordando de um longo estado cataléptico.
- Está liberta. – disse-lhe a bruxa – da tumba e do feitiço. Agora vai embora desta cidade com o homem que realmente ama – e deu a ela um pequeno punhado de dinheiro.
E a lua pareceu mais brilhante por um momento.
O jovem de cabelos negros apresentou a carta de sua mãe às autoridades, e tomou para si toda a fortuna do pai. Extremamente apaixonado e grato, ele cortejava a bruxa.

*

- Sebastião, Adelmo, Rita de Carvalho, Tomás,  Benita, Camila, Tamíres da Fonseca, Izabel. Abelardo do Carmo, Angelo, Fátima, Malaquias de Andrade...
Nomes e mais nomes eram ditos por ela naquela manhã. Não poderia se esquecer de nenhum dos moradores da vila de quem haveria de vingar-se por terem-na expulsado junto com sua mãe. E seus devaneios caminhavam enquanto acariciava sua barriga onde crescia o herdeiro de todos os seus dons e de toda fortuna daquelas terras douradas.
- Rafaela, Dominique, Paulo... 


Franz says: gostou do texto da Carolina? Faça contato com a autora através das seguintes redes sociais:



3 comentários:

  1. Carol, adorei seu conto, é o "meu numero", rsrs. Adoro historias de bruxas e esta me prendeu como um bom conto de terror, e o final me surpreendeu, porque se casou com a inteligencia feminina e outro nuance que gosto muito em histórias, que é a vingança, que galega esperta hein! Ta certa ela! KKKKKK. Ficou ótimo querida! Beijãooo!!!

    Vê.

    ResponderExcluir
  2. Nossa!!! Muito bom! Amei... E o final, hiper inesperado pra mim!
    Adoro esse tipo de vingança inteligente *.*

    Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  3. Meus Parabéns Carol! Excelente conto.
    Adoraria ver mais histórias de vingança dessa bruxa...

    ResponderExcluir